Posts in Category: Artigos

Essa pandemia está nos ensinando muita coisa.

Uma delas é valorizar as amizades.

Outro dia falei: vou ligar para a Fabiana. Faz tempo que não a vejo. Preciso saber das novidades.

Quando liguei, descobri que ela tinha morrido de Covid.

– Mas morreu como?

– Ué, sufocada, sem ar, como todo mundo morre dessa doença maldita, você não ouviu falar ainda?

– Não dona Gertrudes. Eu sei como é a morte por Covid. O que quis dizer é que foi tão de repente, né?

– De repente mesmo, mas de repente mesmo foi a morte do tio Vidal. Ele ia se casar e na véspera mudou de planos.

– Como assim? Ele também morreu de Covid?

– Não, ele descobriu a traição da noiva.

– Como a senhora fala uma coisa misturada com a outra? Isso não tem nada a ver com a morte da Fabiana. Aliás, nem com morte tem, porque o tio Vidal só não se casou.

– Ué, mas não se casou porque morreu.

– Ué para a senhora também: como morreu? Ele não tinha descoberto a traição da noiva e desistido?

– Não, ele descobriu a traição da noiva e decidiu que, em vez de se casar com ela, ia matar ela. Mas aí o amante dela matou ele primeiro. Foi de repente: um tiro na cabeça só.

– Dona Gertrudes, entendi agora o que aconteceu, mas o que isso tem a ver com a morte da Fabiana por Covid?

– Ué, o médico que cuidou dela e que disse que ela estava com a doença é o amante da noiva do tio Vidal.

– Mas então o médico que cuidou da Fabiana está preso?

– Não, ele fugiu.

– Esse médico não é aquele que era amigo do tio Vidal, que fez a cirurgia para a retirada da amigdala dele?

– Esse mesmo: o doutor Juvenil. Eram amigos desde criança. Estudaram juntos a vida inteira. Depois, um foi ser médico e o outro virou agrônomo.

– E agora dividiam a noiva?

– Não é à toa, né? Ela namorou os dois. Primeiro um e depois o outro. Aí largou de um e voltou com o outro. Depois largou do outro e voltou com um. Acho que chegou uma hora que ela já estava confusa com qual estava e ficou com os dois. O problema foi o um descobrir o outro ou o outro descobrir o um. Olha, acho que até eu estou confusa.

– E quem era essa noiva afinal?

– Era a Manoela.

– A Manoela? Essa Manoela não é aquela que ficou pelada na escola? Eu lembro dela.

– Essa mesma. Tinha umas pintinhas na bochecha.

– Na bochecha e em outros lugares, né?

– Sim, na bunda também.

– Nossa, mas ela era bonita.

– A Fabiana pegou Covid junto com ela.

– Como assim dona Gertrudes?

– Ué, elas moravam juntas.

– Meu Deus, mas então a Manoela também está doente?

– Não, não está não.

– Mas a senhora disse, dona Gertrudes, que a Fabiana pegou Covid junto com ela.

– Sim, é verdade, mas a Manoela morreu.

– Morreu de Covid também?

– Não, ela morreu de tiro mesmo.

– Como assim dona Gertrudes?

– Ué, o noivo dela não queria matar a Manoela?

– Sim, mas o doutor Juvenil, médico que era amante dela, matou o noivo dela antes, o tio Vidal.

– É, mas o tiro que acertou nele pego nela também.

– Que tragédia dona Gertrudes.

– Tragédia mesmo foi o que aconteceu com Maria Alice.

– Quem é Maria Alice dona Gertrudes?

– É a minha neta, lembra dela? Aquela pequititica que você gostava de brincar de mágico com ela?

– Sim, eu lembro. Nossa, faz tempo que eu não a vejo. Essa pandemia impediu muita coisa. Mas o que aconteceu com a sua neta dona Gertrudes? Não vai dizer que pegou Covid também e que morreu? A senhora não tem jeito para dar notícias. Não tem mesmo.

– Ué, eu falo o que acontece.

– E aconteceu o que para ser uma tragédia maior que tudo o que a senhora já me contou?

– Ela ficou grávida.

– Grávida? Como assim? Ela nem namorado tinha.

– Pois é, mas não foi namorado.

– E quem foi?

– Foi o doutor Juvenil.

– O doutor Juvenil? Como assim? Explique isso.

– Ela foi fazer uma consulta com ele e aí aconteceu.

– Puxa vida e eu não sabia de nada disso.

– Ué, você não visita os amigos mais.

 

Uma luz no fim do túnel

– O senhor está bem?

A pergunta pareceu um ponto de luz no fim de um túnel escuro para Francisco, que constantemente observava a visão escurecer e voltar a se iluminar, embora a luz que conseguisse quase sempre fosse semelhante a um lampião.

A solidão causada pela pandemia agravou isto.

– Como é?

– É o seu Francisco quem fala?

– Sim, sou eu mesmo.

– Então seu Francisco, eu perguntei se o senhor está bem.

– Você quem é, minha filha?

– Eu sou a Michele do banco Itaú.

– Ah, entendi.

– O senhor está bem?

– Estou sim. Quer dizer, há muito tempo que não sei o que é estar bem. Mas minha neta dizia que a gente tem de dizer sempre que está bem. Às vezes enganamos o destino, né?

– Rsrsrsrsrs.

– Por que você ligou Michele?

– O senhor deve sim sempre dizer que está bem, porque o pensamento positivo opera mudanças na vida da gente seu Francisco. O senhor já comprovou isso?

– Eu não sei minha filha. Eu não falo com muita gente. Fora você e outras meninas de bancos, só falo com quem pede alguma coisa aqui na minha porta.

– Entendi. Mas o senhor não se sente bem? Tem quem possa chamar se precisar de ajuda?

– Eu tenho tido uma escuridão nas vistas. De repente, parece que some tudo. Aí eu escuto alguma coisa e parece que uma luz lá no fim do túnel aparece e eu volto. Se acontecer alguma coisa, é só chamar o Samu. Se não der tempo, tem de chamar a funerária mesmo.

– Puxa, seu Francisco. Não fale assim. O senhor já procurou o médico para ver esse problema?

– Já, minha filha, mas ele diz que não tem solução. É a idade. A gente fica velho e até o corpo esquece da gente.

– Eu já disse: não fale assim. Quantos anos o senhor tem?

– 87.

– É uma bela idade seu Francisco.

– Bela? Só se for para olhar de longe, né?

– Rsrsrsrsrs. Como assim?

– Quando você olha de longe, não vê direito.

– Eu acho sim uma bela idade seu Francisco. Meu avô tem 85. Eu gosto muito do meu avô. Ele me contava histórias quando eu era pequena. Depois de adulta, ele ainda me fala do seu mundo. Pena que não fale com ele há tempos.

– E o mundo do seu avô é melhor que o meu?

– O mundo de todos os avós é bom, seu Francisco. O senhor tem netos? Quais são os nomes deles?

– Tenho, mas é como se não tivesse. Eles nunca vêm aqui. Agora que estamos com essa pandemia não vão vir mais.

– Quais são os nomes deles? O senhor tem saudade? O senhor fala com eles pelo telefone?

– Marcos e Ana. Tenho sim, muita saudade. Gostava quando eram pequenos. Eles gostavam de mim. Hoje não falo com eles não. Eles nunca têm tempo.

– Que pena seu Francisco. A gente nunca devia abandonar os nossos avós. Eles são como nossos pais mais velhos.

– É verdade minha filha. Eu lembro dos meus avós. Eu ia na casa deles no sítio. A gente se divertia muito. Eu subia nos pés de manga. Meu avô vinha atrás. Depois chupava manga comigo. Quando ele morreu, estava muito velhinho já, mas eu sempre falava com ele. E olha que ele estava que nem eu estou agora.

– O senhor ainda tem muita vida pela frente seu Francisco. Ainda vai ver os seus netos. Tenha paciência.

– Obrigado minha filha. Ninguém conversa comigo, mas eu gosto de conversar. Você queria o que mesmo?

– Eu liguei para vender um empréstimo ao senhor seu Francisco, mas estou vendo que o senhor não precisa.

– E você vive de vender empréstimo?

– Vivo sim. Se não consigo que ninguém empreste, não recebo no final do mês. Em geral vendemos para pessoas aposentadas, mais idosas, como o senhor. Mas eu ligo outro dia para ver se o senhor vai precisar.

– Michele, é Michele, né?

– Sim, é Michele sim.

– Eu quero emprestar. Me fala sobre isso. Eu vou ajudar você. Você me ouviu, falou comigo. Gostei de você.

– Mas o senhor está precisando?

– Não estou. E você estava precisando falar comigo todo esse tempo? Pense que você perdeu tempo comigo.

– Não perdi não seu Francisco. Ouvir que o senhor tem saudade dos seus netos, me fez lembrar do meu avô. Não posso vê-lo agora e tenho ligado pouco para ele. O senhor me fez ver isso. Sabe aquela coisa da luz no fim do túnel?

– Rsrsrsrsrs. Então, eu que não enxergo e vejo tudo escuro e é você que vê a luz? Que bom que pensa no seu avô.

– Penso sim. Agora mais.

– Então, vamos fazer o empréstimo minha filha.

– Vamos sim.

Quando estava tudo certo e o seu Francisco deu o sim de concordância final para ficar gravado, ele emudeceu.

– Seu Francisco, seu Francisco? O senhor está aí?

Como não tinha resposta, Michele acionou o Samu.

Foi o que salvou o seu Francisco.

Vários olhares sobre a fundação da mesma Salto IV

O quarto trecho transcrito sobre a fundação da cidade de Salto foi escrito pelo médico Dr. Adriano Randi (1921-2010).

Em 1959, ele publicou o livro “Município de Salto”. Logo nas primeiras páginas o autor narra a fundação da cidade.

Boa leitura.

***

“Na fria e nevoenta manhã do dia 16 de junho do ano de 1698, da era cristã, no sítio denominado “Cachoeira”, situado no ângulo formado pela confluência do rio Jundiaí, no rio Tietê, à sua margem direita, o Vigário de Itú, o Padre Phelipe de Campos, benzeu e inaugurou a Capela construída pelo Capitão Antonio Vieira Tavares, sendo o mesmo e sua primeira espôsa, Dona Maria Leite, os padroeiros.

Neste dia festivo, presenciaram a inauguração uma comitiva de ituanos e diversos escravos e um grupo dos últimos remanescentes dos Índios Tupí de Paranaitú. A Capela foi erguida em louvor a Nossa Senhora do Monte Serrat, numa colina distante cerca de uma légua da Vila de Nossa Senhora da Candelária de Itú. Em redor da Capela, paulatinamente, foi surgindo um pequeno povoado que tomou o nome de “Salto de Itú”, que na língua indígena significa: Salto d’água.”

Água

Sofia colocou água em um copo e começou a saboreá-la como se fosse um Moet Chandon.

Ninguém entendeu nada.

Depois de um surto de raiva minutos antes, era estranha aquela calma toda e aquele tratamento com a água.

Ela viera da rua explodindo.

Parecia que tinha visto o inimigo número um do mundo.

– O que aconteceu?, perguntou a mãe.

Mas ela não quis responder.

Disse só uma frase que, para dona Otília, dava um recado claro de que não queria falar:

– Não aconteceu nada, nada, nada.

Só algum tempo depois é que se descobriu.

O primo Ricardo, que trabalhava no bar que Sofia gostava de frequentar, foi quem contou:

– Ela se irritou com o barman.

– Como assim?

Quando Sofia chegou bem perto do balcão e pediu uma garrada de água, ele devolveu o pedido com uma pergunta:

– De cerveja?

– Não, de água.

Sofia estava morrendo de sede e queria ser rápida.

Não adiantou.

O balcão do bar era largo e, mesmo estando perto dele, Sofia não ficara próxima o suficiente do barman.

Além disso, estava um barulho danado, embora desse para ler os lábios dela dizendo água.

Ele fez cara de quem não havia ainda entendido:

– Mais forte?

– Estou gritando já: água.

Disse e fez o gesto de colocar em um copo.

– Vodka, é isso?, perguntou o barman.

– Não, meu amigo, água. Eu quero água. Estou morrendo de sede. Parece que comi um bacalhau puro agora.

Sofia fez um gesto com as mãos como se demonstrasse que queria um líquido que escorre por onde passa.

– Ah entendi: cachaça?

– Não, Cristo. Estou dizendo: á-gu-a, á-gu-a, entendeu?, ela estava vermelha já por falar tão alto.

O barulho parecia aumentar.

Sofia frisava, repetia, soletrava, gesticulava, tudo mais alto que o barulho, mais claro que a própria água desejada.

– Está certo, agora sim, agora sim, disse o barman.

– Finalmente, suspirou ela, sem que ele ouvisse.

Em seguida, o barman voltou a perguntar:

– Você quer pura ou com limão?

– O quê? Pura, eu quero pura. Mas você está falando de água, né? Água, né? É isso que eu quero.

Ela fez o gesto de novo demonstrando que era uma garrafa pequena o que queria.

O barman fez sinal de positivo pela primeira vez.

– Você quer mini ou média?

– Agora estamos nos entendendo, disse ela sem que fosse alto o suficiente para ele ouvir.

Era mais um desabafo mesmo.

Ela escolheu a mini.

Mas antes de que o barman pegasse a água, ele voltou a perguntar para tirar mais uma dúvida:

– Com gás ou sem gás?

Já era muto que ele tivesse entendido finalmente, mesmo assim Sofia fez o gesto de sem, não queria com gás.

Então ele entrou para a cozinha.

Demorou um pouco a voltar.

Quando o barman saiu com a água na bandeja, fez questão de dar a volta no balcão e se aproximar dela:

– Eu já trago a sua cachaça, disse se afastando rapidamente como se fosse voltar para trás do balcão.

– O quê?, ela se irritou definitivamente e agarrou a garrafa de água que ele trazia na bandeja, sem dar chance para que retirasse o produto do alcance dela.

– Calma, calma, disse o barman parado na frente dela.

– Você é louco?

– Eu entendi desde a primeira vez. Só estava testando a sua paciência, disse ele rindo sem parar.

Sofia não pensou duas vezes: apesar da sede, pegou a garrafa de água e jogou-a toda na cara do barman.

– Você é louca?, disse ele.

Sofia deixou o bar sem pagar pela água e sem tomá-la.

Agora era o barman quem se irritava.

Que bad

O tempo se esvai como fumaça em caracol, que a esquadrilha de aviões deixou na última vez em que passou.

Antes que desapareça, voa pelo céu feito balão de São João. É festa junina. Tem música, gente fantasiada, muito doce, vinho quente e quentão.

Estou com dor de barriga.

Vou ao banheiro, que fica atrás de algumas árvores.

Abro a porta e vejo uma tábua com um buraco no meio em cima de uma fossa.

Batem na porta me chamando para o café da minha avó. O café, feito com grãos colhidos na hora, é tão fraco, tão fraco, que não sai do bule.

Sem paciência, pego o celular e abro uma tela enorme e colorida, onde uma baleia azul me engole em um único bocado. Desapareço.

Está escuro e frio agora.

Estou com medo.

Corro sem direção.

De repente, encontro baratas gigantes que gritam para que eu pare e usam suas antenas como espadas.

Na hora em que vão me matar, aparece o zorro e luta contra elas, me salvando.

Subo em um cavalo branco, que sai em disparada rumo a um vale encantado.

Lá no fim da trilha existe uma princesa toda bonita que me espera para se casar.

Mas ela não tem dentes.

Então eu fujo sem olhar para trás.

Fecho os olhos cansado e quando os abro estou em um show de Sandy e Jr. Eles gritam: – Vamos pular, vamos pular. Eu pulo e metade de mim vai, metade de mim fica.

A metade que ficou desmaia e a metade que foi para.

Só aí percebo que acabou a tequila.

Cadê o garçom?

Olho em todo lugar e não encontro ninguém.

A polícia chega e diz: você está cercado.

Que bad.

Acordo.

Eu poderia comprar a vila inteira

Dinheiro não traz felicidade.

Esta frase sempre me foi repetida em casa. Não porque venho de família pobre, mas para que nunca colocasse a ambição acima de tudo.

Tem muita gente que zomba desta interpretação sobre o dinheiro. Até há uma frase que se contrapõe: “Dinheiro não traz felicidade, manda buscar”.

Mas acredito que o sentido inicial seja o verdadeiro.

Certa vez, eu assessorava uma autoridade política importante e rica, a quem não faltava nada em bens materiais visivelmente.

Em uma visita que fizemos juntos a uma favela, percebi que o que faltava a ela era o emocional.

Ela tinha brigado feio com o marido.

Estava abalada, mas, rigorosa que era com os compromissos assumidos, não quis adiar.

Ventava muito nesse dia.

O cabelo dela ficou todo desgrenhado.

No lugar em que fomos, tomamos café com marido e mulher em um casebre que mal parava em pé.

Os dois se tratavam com tanto amor que chamava a atenção de todos em volta.

Causava inveja.

Juntos, pediram à autoridade que eu assessorava apenas que lhes ajudasse em uma cirurgia de catarata para a mulher, que estava com dificuldade para enxergar.

Saímos do barraco e essa autoridade desabou em choro compulsivo, me assustando.

Eu não entendi de pronto.

Ela então me perguntou:

– Você é feliz?

Eu retruquei:

– Por quê?

E ela respondeu:

– Porque felicidade é isso. Eles têm um ao outro. Não precisam de mais nada.

Fiquei sem saber o que dizer.

Ela completou:

– Eu poderia comprar essa vila inteira, mas não a felicidade deles.

Candidato

 

Perfeito é o homem

que conseguiu enganar

a todos de uma vez,

sendo o que não é

na pele de quem é.

Do quanto se ouvia de uma parede para outra

Há muito tempo, quando eu ainda era um adolescente, morei em um conjunto de casas conjugadas em Salto.

Essas casas ficaram muito conhecidas na cidade e chegaram a ter o nome pejorativo de cortiço.

Para nós, que morávamos lá, elas não passavam de simples imóveis geminados, muito comuns antigamente.

Era o Rei da Vila.

A construção ficava na região próxima onde hoje funciona a cooperativa de médicos Unimed e que na época era por onde a cidade crescia e se desenvolvia.

Não passavam de vinte casas.

De qualquer forma, sendo cortiço ou casas geminadas, um traço que era comum naquele lugar e que sempre foi muito marcante para mim era a fofoca.

Nesse local todo mundo sabia da vida de todo mundo.

Talvez por causa da proximidade e do quanto se ouvia de uma parede para outra.

Lembro que um dos vizinhos era um padeiro.

Rapaz jovem ainda, vindo do nordeste, ele queria vencer e formar uma família, mas nunca conseguiu.

E todo mundo falava mal da vida dele por isso.

O coitado não podia nem se defender. Trabalhando à noite sempre, estava com sono frequentemente e passava o dia dormindo, longe do burburinho, embora fosse afetado por ele.

Ele não conseguia acompanhar a vida da comunidade que habitava ali da mesma forma que ela acompanhava a vida dele.

Essa era, aliás, a razão para o falatório contra ele.

Divaldo ficou famoso na comunidade por perder namoradas.

A cada uma que arranjava ele era trocado por outro.

O problema era um só: não conseguia dar assistência.

Estava sempre trabalhando de noite e elas queriam sair. Nos finais de semana, também não saia porque dormia. O único dia em que conseguia era o da folga, mas era um dia só e isto acontecia apenas duas vezes por mês.

Boa gente, ele não reclamava quando elas se irritavam. Ao contrário, tentava contemporizar. Admitia até que saíssem sozinhas para não ficarem tão zangadas.

Era aí que elas iam embora. Quando saiam, encontravam gente com mais tempo. Esses eram os seus piores rivais.

O famoso ditado popular “Quem não dá assistência abre concorrência” foi sempre a sua mais dura realidade.

O coitado, às vezes, nem era avisado que fora trocado.

Uma das namoradas deixou que ele comprasse móveis a prestação e que desse até entrada em uma casa para viver com ela. Só depois ela disse que já estava com outro.

Quando ele foi avisado que tinha sido passado para trás era tarde e o coitado ficou com as dívidas. Teve de vender a preços mais baixos para não se enforcar.

Depois de muito tempo, ele voltou a arranjar uma namorada. Ao contrário das outras, essa era super compreensiva.

Roseli não se incomodava porque Divaldo não podia sair.

– Fico em casa e aproveito para orar, ela dizia.

Evangélica, se apresentava como uma moça realmente de família. Vestia-se com roupas pouco atraentes e não usava maquiagem em excesso como as outras.

Divaldo achou que tinha tirado a sorte grande.

Chegou a ligar para a mãe em Garanhuns para falar da nova namorada, empolgado que estava.

Mas outro ditado popular veio fazer parte da sua vida: “Não existe bom marinheiro com mar calmo”.

Um dia ganhou uma folga inesperada e não pensou duas vezes: foi visitar Roseli de surpresa.

Ao chegar à casa dela, encontrou um homem: Roberto.

– Quem é você?, perguntou assustado.

O tal homem não sabia como responder e nem o que responder. Ele não tinha uma resposta.

Na verdade, Roberto era Roseli.

Ele era um travesti que se apaixonara pelo padeiro.

Apesar do susto da descoberta, Divaldo não terminou o namoro nem se ofendeu com a realidade.

Gostava de Roseli já e a calma dela o alegrava muito.

O problema foi que as pessoas que moravam no Rei da Vila não se conformaram. Passaram a fazer gozações com o padeiro e a ridicularizar Roseli.

O pior aconteceu no dia do aniversário da namorada.

Divaldo montou uma festinha para ela no seu quarto no Rei da Vila e quando ela chegou foi linchada e morreu.

O padeiro ficou tão desconsolado que nem foi trabalhar. No dia seguinte não tinha pão para ninguém, mas essa não foi a pior notícia. A que foi a pior é que a padaria o demitiu.

Se todas as pessoas que cuidam da vida da gente realmente tivessem interesse em nós, seríamos os melhores.

O problema é que ninguém cuida realmente da vida da gente. Em vez disso, cuidam é do escândalo.

Quase nunca o que é “notícia” para fofoqueiros é verdade.

Topa?

– Ela viajou.

– Mas por que não me levou?

– Ela estava com pressa.

– Não queria ficar. Eu queria ir com ela.

Por que ela não me levou pai?

– Eu já disse: ela estava com pressa. Você vai ficar bem aqui Isabela. Venha, venha comigo. Vamos para a sua cama agora.

– Não, eu queria ir com ela. Com elaaaaaa. Espera, ela também não te levou. Por que ela não te levou?

– Ela estava com pressa.

– Que pressa é essa seu Francisco que esquece a filha e o marido? Por quê?

– Tem coisas que são difíceis de entender até para a gente Isa.

– Não tem não pai. Quando ela ficou doente você disse que ela foi visitar tia Carmita e ela não tinha ido. Você está mentindo para mim de novo?

– Eu não queria que você ficasse chamando por ela. Depois, logo ela sarava e voltava. Ela não voltou? Voltou. Foi como eu pensava, como eu te falei.

– Então ela voltar agora pai?

– Eu não sei. Pode ser que não volte porque está muito bom lá. A gente não sabe. A gente não sabe como é lá.

– E ela vai deixar a gente aqui porque está bom lá onde ela está?

– Não, a gente vai para lá com ela.

– Que bom, eu vou arrumar a minha malinha. É só um minuto.

– Não Isa.

– Por que não? Eu quero ficar com ela. Sinto falta da minha mãe.

– É que não é o momento. Tem de esperar para ver se ela vai gostar de lá. Vai chegar a nossa hora.

– Eu posso ligar para ela?

– Não.

– Por que não? Eu tenho celular. Eu tenho crédito. Por que não pai?

– É que lá não tem celular.

– Onde minha mãe está não tem celular? Ela está em outro mundo? Todo lugar desse mundo tem celular.

– Eu acho que ela está sim em outro mundo minha filha.

– É tão longe assim?

– É uma distância daqui até o céu?

– Minha mãe está no céu?

– Sim filha. Ela está lá. Mas ela sente muita saudade de nós. Tente dormir agora. Você precisa descansar.

A pequena Isabela de apenas seis anos e meio se deita resignada e triste.

– Pai, a minha mãe morreu?

– Ela estava fraquinha meu anjo.

– Mas ela morreu?

– Em lágrimas, o pai continua:

– Não, ela fugiu desse vírus que está na rua e em todo lugar.

– E ele pegou ela?

– Não, por isso ela tinha pressa.

– Quando ela escapar, ela volta?

– Se ela escapar, ela volta. Mas a gente vai se encontrar com ela um dia.

– Vai mesmo?

– Um dia sim Isa.

– Por que você não salvou ela do vírus?

– Eu tentei, mas ele é muito forte. Chegou uma hora que ela correu para um lado e nós fomos para o outro.

– Por que ela não me levou com ela?

– Não levou para te salvar. O vírus foi atrás dela e esqueceu de você. Viu como sua mãe é sabida?

– Mas eu queria ir com ela.

– Sabe um jeito de você enganar o vírus e ver sua mãe mesmo agora?

– Que jeito?

– Você dorme e sonha com ela. Ela vai falar com você sem que o vírus perceba. Mas tem de ficar bem quietinha agora e dormir pesado. Topa?

– Topo.

Elmo

Imagina um cara com medo de se contaminar com o novo coronavírus.

Elmo é dez vezes pior.

O sujeito tem tanto medo que não atende nem entregador.

– Mas como faz com o delivery?, perguntei quando o vi no whatsapp.

– Mando deixar na frente e passo o dinheiro por baixo da porta. Depois que ele vai embora, abro e pego.

– Então você não vê ninguém desde meados de março?

– Não vejo. Mas para não esquecer de ninguém, eu coloco fotos das pessoas da minha família espalhadas pela casa. Aí, quando estou com saudade, converso com elas como se estivessem aqui.

– Que louco.

– Louco é elas responderem.

– Como assim?

– Eu faço as vozes delas falando comigo.

– Está de brincadeira?

– Não, temos até brigas. Outro dia explodi. Não está fácil essa reclusão, né?

– Como explodiu?

– Joguei uma taça de vinho na cara da tia Filó. Joguei mesmo. Ela é abusada.

– Jogou na foto você diz?

– É, ela teve de ficar um dia inteiro no sol coitada. Pelo menos ganhou uma cor.

– Cara, você não está bem.

– É verdade. Eu cheguei a essa conclusão também na última semana. Por isso, já acertei com o pessoal da funerária.

– Acertou o quê? Pare.

– Eu comprei um caixão e um túmulo.

– Cara, pare. Você precisa de um médico. Que história é essa?

– Não é nada. Só não quero dar trabalho. Até porque fotografias não enterram ninguém, né? Já deixei tudo certo. E vou ver o médico quando acabar a pandemia.

– Elmo, você não vai pegar o vírus.

– Como sabe? Eu me protejo, mas…

– Só de não abrir a porta, não precisa fazer mais nada. Eu acho até exagero isso.

– Mas eu não fico só nisso. Uso máscara todos os dias, óculos, capa, bota e gorro.

– Em casa? Não precisa Elmo.

– E se alguém invadir a casa?

– Quem vai invadir cara?

– Há umas duas noites, o alarme da cerca elétrica disparou. Eu fiquei plantado atrás do vitrô com um pedaço de madeira esperando o bandido entrar para lhe dar uma paulada. Resolveria tudo.

– E entrou alguém?

– Nas duas horas que fiquei ali de pé não.

– E depois?

– Eu dormi em pé, mas acho que não tinha ninguém. Deve ter sido a chuva. Ela dispara o alarme. Eu tinha esquecido.

– Não te incomoda ficar desse jeito em casa? Na rua incomodaria com certeza.

– Incomoda mais para tomar banho.

– Você toma banho com tudo isso?

– Claro que não, né? Eu tiro a máscara.

– Escuta, você já falou essas coisas que está me contando para sua família?

– Já sim.

– E eles disseram o quê?

– Ah, eles acham que é mentira. Até me deram um presente para me distrair.

– Que presente?

– Deram uma assistente virtual.

– O que é isso?

– É uma maquininha que conversa com a gente. Você coloca a agenda, lembretes e rotinas para ela cumprir. Tipo: você diz bom dia e ela te responde com outro bom dia, fala a temperatura, o que se comemora e se vai chover ou fazer sol.

– Mas é sempre igual?

– Não, o que você pergunta, ela responde. E você coloca que tipo de resposta quer. Por exemplo, coloco lá que ela deve me fazer um elogio aleatório e ela escolhe uma frase e faz.

– E você fala com a máquina?

– Falo. Tenho de falar bastante para ela aprender como falo. Assim, fica melhor.

– Pelo menos não fala com as fotos mais.

– Quando brigamos não falo.

– Além da tia Filó, você brigou com outras pessoas das fotos?

– Já briguei com todo mundo.

– E jogou vinho neles todos?

– Como sabe?

– Deduzi.

– Sabe, as pessoas estão ficando muito loucas nessa pandemia.

– Eu imagino. Se pessoalmente são loucas, só na foto então? Loucura total.

– Eu não gosto de ser chamado de louco.

–  Pelo menos a máquina não briga? E faz elogios, né? Isso é bom, ainda mais agora.

– Você é que pensa que não briga. Ela responde irritada às vezes.

– Irritada? A máquina?

– É, ela diz assim: prefiro não falar sobre esse assunto e não fala e pronto.

– E você?

– Eu xingo. O que você queria? Xingo até a tia Filó, por que não xingaria ela?

– O que acontece depois?

– Ela me xinga também.

– Você não jogou vinho nela, né?

– Ainda não, mas me aguarde.