Texto publicado na edição de 07 de agosto de 2020 do Jornal Primeira Feira.
Coluna: Um dedinho de prosa.
Boa leitura.
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Uma situação de guerra gera danos muitas vezes imensuráveis e, com toda certeza, o pior de todos e aquele que é irreparável é a quantidade de mortes daqueles que estão envolvidos direta ou indiretamente na situação toda. Segundo estudiosos, o saldo de mortes da Grande Guerra foi entre oito milhões e dez milhões de pessoas. Mesmo diante dessa situação catastrófica, havia aqueles que de alguma maneira tentavam se beneficiar, é o caso de uma denúncia feita pelo jornal A Federação, na edição de 08 de agosto de 1914. Leia a transcrição:
“Soubemos que tambem nesta cidade ha negociantes que estão aproveitando-se do pretexto do conflicto europeu para se enriquecerem da meia noite para o dia, vendendo pelo dobro ou pelo triplo mercadorias que compraram ha tempos, e que por conseguinte não se acham no caso de suspender o seu preço.”
Nas próximas linhas do texto, presente em uma coluna com o título “Aviso ao público”, o jornal incentiva que os cidadãos não comprem em tais comércios e ainda sugere que a câmara casse suas licenças. Em outro jornal da mesma data era noticiado o mesmo fato, veja o que dizia A Cidade de Ytú:
“Infelizmente e como era dado esperar, não nos enganamos: em menos de oito dias os principaes artigos de alimentação duplicaram quasi todos de preço, alguns havendo que estão já próximos do triplo.”
A Cidade de Ytú, em outra edição, continua sua crítica:
“Os gêneros alimentícios são escassos, mal chegam para o consumo do povo. Mas o commercio levantou o preço só porque a Europa guerreia! Que tem essa guerra com o nosso velho Ytú? […]
Agora que ninguém trabalha, porque as fabricas estão se fechando esses operários teem de comer e vestir nada, porque os nossos caros negociantes só vendem a tinir.”
Na edição de 15 de agosto de 1914, o mesmo jornal que anunciava o passo a passo da Guerra em suas publicações desde que fora oficializado o conflito, trouxe uma nota curiosa:
“A imprensa allemã publica noticias falsas sobre o successo do exercito allemão sobre as tropas francezas e russas.”
“Foi declarada officialmente a guerra entre a Inglaterra e a Áustria desde meia noite.”
Pois bem, meu amigo leitor e amiga leitora, nota-se que, de alguma maneira a Guerra já começava a deixar seus efeitos na nossa região mesmo diante dos primeiros passos do conflito. Jornais se preocupavam em transmitir para a população os dias de guerra na Europa e, não são poucos os que denunciavam as questões relacionadas ao alto preço das mercadorias diante de tal cenário.
Com isso, encerro por enquanto a sequência de textos sobre a Primeira Guerra Mundial e os jornais locais. Com toda certeza voltaremos a prosear sobre o assunto sob uma nova ótica.
Um bom fim de semana a todos.
Conversando com um amigo dos tempos da faculdade esses dias, ele me disse que não vê a hora de a pandemia acabar para dar um abraço alicate em quem ele gosta.
– Abraço alicate?
– Sim, um abraço muito bom que aprendi em uma viagem à Itália e do qual tenho muita saudade.
– Que diabos é isso?
– É um abraço bem apertado. Você traz a outra pessoa para bem perto. Depois enlaça o corpo dela com os braços. Aí finaliza colocando o seu queixo atrás do ombro dela. É como se o queixo abotoasse o abraço para não soltar.
– Interessante.
– Muito mesmo: você consegue sentir a alma da pessoa.
– Com certeza. A alma e o que mais quiser. Tão perto.
– Você já está pensando o que não deve, né?
– Não estou pensando nada, mas um abraço assim certamente faz você pensar muita coisa, não faz?
– Um abraço assim reduz o estresse, baixa a pressão, cura doenças, alivia dores, melhora o humor e a autoestima.
– Eu imagino.
– Imagina o quê?
– Um abraço assim dá até para casar.
– Não dá para casar, mas, dependendo em que você der esse abraço, dá para descasar com certeza.
Depois de ensaiar um tempo, ele disse:
– Acorda, minha princesa.
Ela respondeu:
Já acordei, mas não consigo me levantar.
Foi aí que ele se virou para ela lentamente e a encarou.
O rosto banhado em sangue. Faltava-se uma perna inteira e metade da outra. Era por isso que ela não se levantava.
Tentou não deixar transparecer o choque para não a assustar.
O problema é que não se lembrava de nada. Procurou refazer os passos até ali. Inútil.
Ao forçar para lembrar, sentiu a dor na pancada. Sua cabeça estava aberta. Um corte profundo no lugar de onde o cabelo havia saído.
O sangue também lhe escorria. Havia pensado antes que era suor.
Resolveu contar a ela:
– Não sei o que aconteceu, mas estamos morrendo.
Ela olhou para a cabeça aberta e, embora a visão lhe desse uma dor profunda, apenas deixou as lágrimas rolarem.
Então lhe confessou a ele:
– Eu te amo.
Ele disse:
– Eu também te amo.
Os dois olharam em volta, como se os olhos se perdessem por falta de forças, e viram que o dia amanhecia.
Ela disse:
– É de manhã e estamos morrendo.
– Sim, ele confirmou resignado.
Já quase sem voz, ela balbuciou:
– Quero te dizer uma coisa?
– O quê?, ele quis saber:
Ela puxou o ar que lhe restava com esforço e disse:
– Bom dia.
Antes que ela fechasse os olhos para sempre, ele respondeu:
– Bom dia.
Em seguida, também morreu.
O enfermeiro do resgate chegou no mesmo instante.
Intrigado, perguntou à colega que o acompanhava:
– Você me disse bom dia?
Ela respondeu:
– Nem morta.
Depois, recolheram os corpos de mais um acidente de moto.
– Maldito sabonete, maldito!
Álvaro não se conteve com a dor que sentia. Fazia tempo que não xingava. Mas desta vez precisa. A dor justificava.
O sabonete escapuliu das suas mãos quando tentava esfregar as pernas e, ao levar as mãos abaixo, para segurar, acabou caindo.
Escorregou no chão, que ficara mais liso com a espuma do sabonete, batendo a bunda com muita força, apesar de se esforçar para segurar o corpo com o apoio das mãos no piso.
A dor era insuportável.
Achou que tivesse quebrado alguma coisa.
Olhou se sangrava: felizmente não.
Tentou se levantar, mas a dor o impediu.
Ficou parado mais um pouco na expectativa de recobrar as forças para vencer a dor. Era só uma questão de relaxar um pouco. Ele se conhecia. Ainda mais agora que envelhecera.
O peso dos 72 anos parecia maior na cabeça.
No entanto, era nítido que não era mais aquele moleque quase cinquentão de quando começou a frequentar o grupo de aposentados, que fazia dança para passar o tempo.
Álvaro tinha acabado de se aposentar e não via graça em nada mais. Parar de fazer o que fizera a vida inteira não era fácil.
Foi aconselhado a entrar para o grupo.
Não sabia mesmo dançar nem bolero. Seria uma forma de se enturmar novamente. Quem sabe até aprender uns passos.
No primeiro dia, conheceu Monique, uma das mais jovens do grupo. Todo mundo por lá estava na faixa dos cinquenta, sessenta. Havia até quem estivesse na sua idade atual.
Monique não. Tinha só 35. Morena clara, alta, magra, cabelos longos, negros e encaracolados. A boca vermelha.
Mesmo que não tivesse o corpo escultural que Deus lhe deu, ela faria sucesso por ser jovem e por se vestir sensualmente sempre.
As mulheres do grupo torciam o nariz.
Achavam que Monique era exibida e sem noção.
Estava claro que ela não se interessaria por nenhum daqueles homens. Afinal, o mais novo ali, antes de Álvaro chegar, tinha 58.
Pela primeira vez o ex-mecânico via vantagem em ter 47.
Assim que o viu, Monique se mostrou interessada.
Quis fazer par com ele quando foram formadas as duplas.
A aula do dia era de forró.
Álvaro não sabia dançar, mas sabia apertar pela cintura. Ela gostou. Ficaram juntos o tempo todo.
Ele se lembrava agora, ainda sentado no chão do banheiro, de como ela era bonita e do quanto era atraente.
Ah como queria receber aquele sussurro no ouvido agora.
No dia em que aprenderam samba, ela disse com a voz rouca:
– Você é incrível. Adoro como mexe o corpo. Você mexe comigo.
Olhando-se agora pelado, ele sentia as mesmas emoções.
É verdade que a barriga o impedia de confirmar isso, mas ele não duvidava, porque se sentia inflamado pela lembrança.
E quando aprenderam valsa? Que graça ela tinha ao mudar os passos com aquelas pernas longas. Seu perfume o inebriava.
Depois de tantas danças e tanto entrosamento, Álvaro achou que seria a hora de atacar. Tinha de ver se levava aquela que era para ele uma doce menina a algum lugar onde pudesse mostrar como mexia de fato o corpo e onde pudesse sentir o seu toque.
– O que vai fazer depois daqui hoje?
– Não sei Álvaro. Não tenho nada programado. E você?
– O que acha de darmos uma volta?
– Acho boa ideia, mas só se me comprar um sorvete bem gostoso. Adoro chupar esses que vêm no palito.
– Magnun?
– Não, esse é pequeno. Eu gosto dos grandes.
“É hoje”, ele pensou.
Dançaram lambada juntos.
Os requebros que Monique demonstrou o deixaram ainda mais louco por ela. Parecia que ele vislumbrava o momento seguinte.
Mas não conseguiu ver muito.
Assim que saíram da sede do grupo, Álvaro nem percebeu o que o atingiu. De repente, tudo ficou escuro e ele desmaiou.
Mais tarde, no hospital, na companhia de dois dos amigos do grupo, o ex-mecânico foi entender o que acontecera.
O homem que o agrediu com um soco muito forte, na verdade um lutador de boxe, se dizia namorado de Monique.
– Não acredito. Não é verdade. Ela não falou nada.
– Não é namorado de fato, disse um dos amigos.
Pelo que ele entendeu, o homem era ex-namorado, mas não aceitava o fim do relacionamento e a infernizava.
“Em que merda eu fui me meter”, pensou entristecido.
Melhorou o rosto quando Monique apareceu.
Ela foi visitá-lo no hospital.
Se desculpou muito e prometeu que não aconteceria de novo.
Havia conversado com o ex-namorado.
Monique tinha começado a fazer dança no grupo por causa do pai, que também fazia no início e agora estava afastado por causa de dor na coluna. Vinha trazê-lo e acabou se encantando pela dança. Ela adorava dançar “Macarena”, que acabara de ser lançada e era o sucesso do momento. Tocava em todo lugar.
– Essa não aprendemos ainda.
– Eu já sei essa, mas eles vão passar na semana que vem.
Uma semana depois, Álvaro estava de volta à dança.
“Dê alegria ao seu corpo Macarena, que seu corpo seja pra te dar alegria e uma coisa boa. Dê alegria ao seu corpo, Macarena. Ei Macarena”, a música tocava despretensiosa, assim como Monique, que dançava solta na pele de uma minissaia de jeans.
Não dava para não notar: ela tinha um requebrado que ia além da música. Mexia com os instintos mais selvagens de Álvaro. E ela fazia de propósito os gestos mais trabalhados para atiçá-lo.
“Quando eu danço, eles me chamam de Macarena. E os meninos dizem que soy buena. Eles todos me querem. Eles não podem me ter. Então todos vêm e dançam ao meu lado. Mova comigo. Cante comigo. E, se você for bom, eu vou levar você em casa comigo”.
Na hora em que tocava essa parte da música, os outros homens do grupo se aproximavam de Monique e dançavam juntos, como dizia a letra, fazendo que ela se sentisse uma deusa.
Mas Monique abraçava Álvaro no final.
Ele tinha certeza de que agora daria certo.
No final da aula, os dois saíram de mãos dadas. Antes de sair da porta para fora, ele olhou para todos os lados para se certificar de que não seria agredido novamente.
Não havia ninguém.
“Obrigado Deus”, pensou feliz.
Entraram no carro dele e ele nem perguntou nada a ela. Simplesmente dirigiu em direção ao motel mais próximo.
Mas, antes de atingir a rodovia, um carro cruzou a sua frente, fechando-o próximo da esquina. Era o ex-namorado.
Ao vê-lo, Monique desceu e foi em sua direção para dissuadi-lo de continuar aquela cena. Ele a empurrou e seguiu.
Queria Álvaro.
O ex-mecânico desceu do carro e estava disposto a enfrentá-lo agora. Não importava se ele era lutador ou não. Iria fazer o que pudesse, mas de alguma forma iria machucá-lo. Ele tinha certeza.
Só que o ex-namorado sacou um revólver.
– Pare com isso. Enfrente como homem, Álvaro disse.
– Vamos ver se você é homem então.
O ex-namorado terminou a frase apontando o revólver para Álvaro. Estavam a uma curta distância. Ele não erraria.
– Não vou matar você. Saia correndo agora. E não olhe para trás.
Temendo o pior, Álvaro obedeceu.
Quando estava a uma certa distância, o ex-namorado atirou.
Agora Álvaro se lembrava. Ainda no chão do banheiro e com muita dor na bunda, ele se lembrava.
O desgraçado atirou na sua bunda.
Por isso, ele sentiu tanta dor com o tombo.
Desde aquela época, o local ficou prejudicado.
Nunca mais quis ver Monique e muito menos dançar Macarena.
– Vinte e cinco anos depois: maldito sabonete, maldito!
Tenho uma amiga que começou quatro faculdades e não terminou nenhuma. Sempre achava que não era aquela.
Na última, se encantou com o professor e se casou com ele. Teve três filhos, um atrás do outro, escadinha.
Quando tratava da pneumonia do mais novo, conheceu um médico galã e largou o professor.
Mudou-se para São Paulo com ele.
Em um jantar do Conselho de Medicina se sentou à mesma mesa de um empresário, que era casado com uma médica. Em uma paixão avassaladora, ambos largaram seus casamentos e foram morar em Campinas.
Lá, ela se separou dele por causa de um bombeiro musculoso, que conheceu na academia.
Bonita e com um belo corpo ainda, foi convidada para ser modelo. Caiu na conversa de um italiano que fazia fotos. Largou o bombeiro e se mudou para Paris.
Em um passeio de trem por Roma conheceu um produtor de uvas de Portugal e virou mulher de agricultor.
Em uma vinda ao Brasil para visitar os filhos se encantou com um publicitário, que conheceu em uma floricultura. Ele deu flores a ela sem a conhecer e disse uma poesia feita na hora sobre a graça do sorriso que ela tinha.
Não voltou mais para a Europa.
Virou garota propagada da agência do marido.
Depois de algumas campanhas de sucesso, esteve na capa de revistas e montou uma empresa de moda.
Foi aí que descobriu a sua vocação.
Voltou para a faculdade e dessa vez terminou.
Hoje é estilista, mas já se casou de novo.
Mora na Grécia com um irlandês.
Quando eu era pequeno, o circo me fascinava.
A alegria do circo, os estranhos que o circo abrigava, os lugares para onde ia o circo quando partia.
O circo nunca criava raízes, mas era presente sempre.
Talvez eu me encantasse tanto por ser como o circo.
O riso é um guizo que me prende.
Pequeno ainda, eu me esticava feito girafa para alcançar um campo de visão, pelo qual pudesse ver de onde vinha.
Os palhaços eram maestros dessa alegria.
Quem me via rir das palhaçadas, achava que era bobo.
Até hoje rio de coisas nem tão engraçadas para os outros, mas elas carregam um feitiço especial daquela época.
Alguma coisa que vai além da piada apenas.
O circo é mágico.
Havia também tipos inesquecíveis nos circos.
Como esquecer da mulher barbada, do homem lobisomem, do homem que virava a cabeça em até 180 graus, parecendo tê-la soltado do corpo?
Quanto medo eles me deram.
Um frio na barriga de criança que não sabe nada do mundo e que só imaginava o que havia além da esquina.
Quando vi o anão, que se intitulava o menor homem do mundo, fiquei pensando que fórmula ele usava para não crescer e quantas vezes eu não quis crescer também.
E da menina que se dobrava tanto a ponto de caber em uma mala como se tivesse um terço do seu tamanho?
Eu não conseguia dobrar nem o tronco sobre as pernas.
Havia ainda a incrível coragem e habilidade de equilibristas da corda bamba, de malabaristas que formavam pilhas humanas sem deixar os pratos caírem.
Como não admirar os trapezistas que se atiravam de um lado a outro do picadeiro sem rede de proteção?
E os mágicos propriamente ditos então? Que vontade de aprender a fazer. De ter agilidade maior que os olhos.
Quando o apresentador dizia: “Respeitável público”, era como descer em uma montanha russa.
As emoções mexiam com a gente da cabeça aos pés.
Os engolidores de espada chegavam bem pertinho da gente para mostrar como faziam e a boca abria sozinha.
Como era fascinante descobrir essas novas realidades.
Eu ficava sonhando com os lugares descritos pelos palhaços por onde o circo passava e que faziam parte de histórias engraçadas que eles contavam.
Até tentei um dia ir embora com um circo.
Não fosse meu pai me buscar de cinta na mão, teria ido.
Mas eu não ia só assistir aos espetáculos.
Gostava de visitar as imediações das grandes carretas que carregavam o circo de uma cidade a outra.
Geralmente era expulso pelos artistas.
Sempre achei que faziam isto para que ninguém soubesse os segredos que eles guardavam para as apresentações.
Um dia descobri que não era bem isso.
Na companhia de um amigo fui explorar a parte detrás das carretas, onde estava a jaula do elefante.
O ajudante dizia para o tratador da sua preocupação:
– O Duílio não está bem. Tem ficado violento à noite. Eu acho que são dores. Olha os joelhos dele.
– Pare de falar disso. Não podemos fazer nada. Ele vai ter de se apresentar até morrer. É o destino dele.
Ouvir aquela frase quebrou muito do encanto que tinha ao ver as apresentações do elefante.
Só aí comecei a olhar os outros animais e a perceber como havia maus-tratos e sofrimento entre eles.
Eu e meu amigo resolvemos denunciar.
Falei com meu pai, mas ele disse para não me meter com isso que gente de circo não pensava duas vezes antes de agredir e até matar quem se metesse com eles.
Não conseguimos denunciar.
O circo foi embora com o elefante Duílio. Não sei se ele sobreviveu por muito tempo. Uma pena.
Felizmente hoje existe mais proteção, tanto que o dia 12 de agosto é considerado o Dia Mundial do Elefante.
A data foi criada para proteger esses animais, que são tão grandes e fortes (chegam a pesar 7 toneladas), mas se pelam de medo, por incrível que pareça, de abelhas.
Os circos mudaram muito.
Até mesmo os estranhos que tanto me fascinavam foram proibidos, pois eles também eram abusados.
Restaram as emoções de um tempo inesquecível.
Texto publicado na edição de 31 de julho no Jornal Primeira Feira.
Coluna “um dedinho de prosa”
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“A uma pequena distância, cai uma granada. Não a ouvi aproximar-se e levei um susto terrível. No mesmo momento, um medo insano apodera-se de mim. Aqui estou, sozinho e quase perdido na escuridão. Talvez dois olhos me estejam observando, há muito tempo, de uma outra vala, e uma granada de mão esteja esperando, pronta para ser lançada e fazer-me em pedaços. Tento controlar-me. […]
É tudo em vão. […] Na minha imaginação, vejo, atormentado, a pavorosa boca cinzenta e implacável de um fuzil que me ameaça silenciosamente e que acompanha os movimentos de minha cabeça; o suor irrompe por todos os poros.”
Os dois parágrafos citados acima estão no livro Nada de Novo no Front, escrito pelo alemão Erick Maria Remarque. O autor se alistou e combateu na Primeira Guerra Mundial. Após o conflito, ele retorna para a Alemanha e atua em diversos trabalhos, tendo se destacado como escritor. No livro, Remarque traz a narrativa de suas experiências vivenciadas durante a guerra. Pode-se notar o grande abalo, não só físico, mas também psicológico deixado pela guerra naqueles que estavam no “front”.
O que pode ser considerado o estopim da guerra, em 1914, foi o assassinato daquele que seria o herdeiro do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Francisco Ferdinando e sua esposa, por um grupo de nacionalistas sérvios que buscavam desencadear uma revolução contra o Império citado. Aconteceu que o fato tomou proporções bem maiores do que o imaginado. Um mês depois do assassinato, Áustria-Hungria declara guerra à Sérvia.
Acontece que, anos antes (como já citado no texto anterior) as potências europeias já estavam se desentendendo por motivos externos, como a partilha da África durante o imperialismo europeu. A Alemanha, que teve seu Estado nacional formado apenas após a segunda metade do século XIX, saiu atrasada na partilha colonial, porém se desenvolveu de maneira muito rápida, sendo em 1900 maior em determinados setores do que a poderosa Grã-Bretanha. Por outro lado, tinha que lidar com o sentimento de revanchismo dos franceses, isso porque estes haviam perdido os territórios de Alsácia e Lorena – que eram ricas em minérios – para os alemães.
Outro fato na Europa, em momentos antes de estourar a Primeira Guerra Mundial, foi a chamada “corrida armamentista”. Com a disputa imperialista, as potências desenvolveram a indústria de guerra com o aprimoramento de armamentos mais destrutíveis e mais eficientes em um conflito. Nos anos próximos à guerra, havia um grande acúmulo de armas, não tendo como estocar, isso contribuiu para o avanço da Primeira Guerra Mundial.
Meu amigo leitor, no texto de hoje você acompanhou comigo alguns antecedentes históricos da Primeira Guerra Mundial. Não citei nenhum jornal local pois considerei válido contextualizar os acontecimentos. Acompanhe comigo os próximos textos.
Bom fim de semana a todos.
– Aqui é o doutor Gabriel. Se não devolver o dinheiro do meu cliente, vamos processar a sua escola.
– Não, por favor doutor, não há necessidade disso. Diga ao seu cliente para passar aqui hoje à tarde e resolvemos.
E assim Gabriel Lima dos Santos, um advogado, que, apesar de jovem, andava com o Código de Processo Penal e o Código Civil debaixo do braço e se apresentava como o melhor advogado que você conhece, resolveu o impasse criado pela escola onde o amigo Manoel Pereira, comerciante de botas, matriculara o filho e depois desistira.
Manoel apenas comentara em um encontro com o advogado que a escola se recusava a devolver a matrícula.
– Já falei diversas vezes com eles, mas não querem devolver. Disseram que tenho de pagar pela desistência.
Gabriel procurou no Código e disse que não era assim.
– Deixa comigo que resolvo.
Em outra ocasião, o jovem advogado ameaçou uma loja de processo se não devolvesse o dinheiro pago por outro amigo, que devolvera a compra por achá-la inadequada.
A ameaça foi no mesmo tom e a solução rápida igual.
Dias depois aconteceu com mais um amigo do grupo, este supostamente prejudicado por uma seguradora.
O jovem advogado montava um personagem.
Incorporava alguém mais velho, com a voz mais adensada e usava de argumentos diretos. Não discutia muito. Apresentava a demanda, fazia a ameaça e esperava a rendição, que acontecia inapelavelmente.
Todos cediam, recuavam e se arrependiam.
Os amigos festejam a atuação do jovem advogado.
Quem nunca teve vontade de processar todo mundo que lhe cria algum problema e quem nunca ficou com medo de ser processado e ficar com o nome sujo?
Rapidamente, Gabriel Lima dos Santos ganhou fama entre os amigos que jogavam futebol com ele desde pivete.
Passou a ser chamado para causas cada vez mais estranhas: o roubo de duas galinhas por um vizinho rendeu um galinheiro novo ao amigo, o posto de gasolina deu dez trocas de óleo grátis a outro amigo e até um gato sequestrado e que acabou com uma madame, que gostou dos seus olhos claros, gerou pagamento de donativos para o gatil municipal, onde se sofria muito com a falta de verba.
O que funcionava sempre eram as ligações.
O jovem advogado interpretava muito bem o personagem que assumia. Quem atendia do outro lado imaginava um advogado corpulento, que poderia esganar o adversário se não vencesse pelos argumentos. Mas ele também era bom na citação das leis, códigos e portarias.
Ninguém conhece os detalhes da legislação.
Ainda mais no Brasil, onde se faz 40 novas normas a cada dia: não se sabia como Gabriel decorava e recitava tudo.
Um dia, o goleador do time, Jesualdo, um vendedor das Casas Bahia, se meteu em um acidente de trânsito.
Bateu na traseira de um carro ao virar uma esquina.
O dono do carro atingido era calmo e não causaria problemas nunca, mas a mulher dele brigava pelos dois.
– Se bateu atrás, a culpa é sua. Vai ter de pagar. Vai ter de pagar, porque nós vivemos do nosso carro, entendeu?
O casal vendia roupas de porta em porta e usava o carro para levar as bolsas enormes com amostras.
Jesualdo não admitia que estava errado.
Sempre contava vantagens de como dirigia bem.
Assumir a culpa acabaria com a sua reputação.
– Eu virei a esquina e fui surpreendido com o carro deles parado no meio da rua. Não deu tempo de nada. Você pode me salvar dessa Gabriel? Me ajuda.
O jovem advogado não se abalou com o fato de o cliente ter batido atrás do outro veículo.
– Vamos resolver.
Baseava-se em outro caso que vencera sobre uma ultrapassagem de oito carros ao mesmo tempo.
O motorista fora flagrado pelo radar acima da velocidade.
Gabriel colocou na defesa que ele estava na frente de uma carreta e que corria acima da velocidade para não ser atropelado e porque havia oito carros para superar.
Os julgadores aceitaram a desculpa.
– O meu cliente foi surpreendido por vocês. Não poderiam parar no meio da pista desse jeito.
– O senhor está enganado. Ele estava muito próximo e por isso bateu. Se estivesse na distância correta, não acontecia.
A mulher do dono do carro atingido por Jesualdo era implacável. Para se livrar desse obstáculo, ele pediu para falar com o marido dela. Ela não deixou.
– Não, o senhor pode falar comigo mesma. Eu sou a mulher dele e sei de tudo. Ele não é bom para discutir.
Justamente por isso ele queria falar com o marido e chegou a sussurrar esse desejo, mas ela ouviu.
– Não adianta: vai ter de falar comigo.
– Obrigado então dona Mônica, eu ligo depois.
Desligou em seguida.
Era uma tentativa de escapar dela.
Jesualdo estava certo de que venceria.
Falava para todo mundo que o seu advogado era o melhor e que tinha os melhores argumentos.
No outro dia, Gabriel pediu para a irmã ligar e dizer que era da seguradora. Quando o marido assumiu o telefone, ele pegou a ligação do outro lado.
– Amarildo, eu tenho uma proposta para você.
Não deu tempo nem de começar a falar, a mulher pegou o telefone e esculachou com ele.
Parecia que dessa vez não ia dar.
Jesualdo desanimou.
– Vamos fazer um acordo Gabriel.
– Não, eu descobri que o carro dele está irregular. Dessa vez, não vou ficar por telefone. Vou pessoalmente.
– Tem certeza?
– Sim.
O jovem advogado foi à casa do casal e sentenciou:
– Se vocês não fizerem um acordo e pagarem as despesas do meu cliente, eu vou processar vocês.
– Ah vai?, perguntou a mulher enfezada do Amarildo.
– Vou sim. Vocês pararam no meio da pista. Ele não teve tempo de frear. Vocês são culpados.
– Pai, é esse o advogado que eu te falei, disse a mulher após um homem grisalho, muito bem vestido, entrar.
– Doutor?, perguntou ele.
– Doutor Gabriel Lima dos Santos, o seu melhor advogado.
O homem riu.
– Como o melhor advogado de alguém pode propor a um motorista, atingido na traseira, que ele pague os prejuízos?
– O meu cliente foi surpreendido…
– Foi sim, mas por causa da imprudência dele, que estava mais próximo do que deveria e por isso não freou.
– Olha, eu não vou discutir. Vou processar a sua filha e o seu genro. Eles estão errados. Qualquer juiz vai reconhecer.
– Será? Eu não reconheço.
– Não importa se o senhor não reconhece.
– O senhor sabe quem eu sou?
– Não me interessa, eu só vim aqui para tentar um acordo.
– Eu sou o juiz da comarca.
Quem poderia imaginar que aquela mulher fosse filha de um juiz e pior que isto: do único juiz da comarca.
E foi assim que o jovem advogado perdeu a primeira.
Não tenho medo de nada.
Na verdade, tenho um medo só.
O medo de ter medo,
porque o medo te tira tudo.
Texto escrito pelo Acadêmico Bernardo Campos.
Cadeira número 30
Patrono: Jorge Amado
***
A quem quer que seja, dos eruditos do idioma, que se debruce ou debrucem para exame das obras de Jorge Amado – seja ou sejam dos mais alentados vernaculistas -não lhe abrangem a extensão dos dezesseis livros publicados, na verdade dezenove, eis que três deles (Os ásperos tempos, Agonia da noite e Ilustrações de Renina Katz) se se apresentam embutidos num mesmo título de “Os subterrâneos da liberdade”.
Dezenove deles, todos ou que fossem somente onze, até sete diga-se, não dissecam o emaranhado das noites e dias da intrincada Salvador de antanho, que sua pena absorve magistralmente.
Pulse, compulse, um único exemplar da vasta coleção do autor de um linguajar pitoresco mas, sem perda do eclético ou da performance no domínio da língua portuguesa. Esse um aspecto de mil outros, que distingue Jorge no contexto autoral pátrio.
Disse ele do povo pobre, sem amanhã e por isso de dia eternizado. Em quantas citações de Jorge não se evidencia a troca sistematizada dos seus personagens, varada na miséria, mas impregnada de alma peculiar, a dos noctívagos, desenhados em sua fala e expressões típicas.
Jorge, de sucinto a extenso a mais não poder, a serviço da hora, do dia e de seu estado de espírito, de controlado desassossego, como se o contraditório se unificasse e aí sim o fulcro dessa criatividade infinda.
Sua verve transcende crenças, opiniões, preferências e o que mais seja. É a andança e fruição do idioma português comum a vários países, mas na prosa de Jorge, em tom caracterizado, por isso único. Dele. Personalizado.
O mundo o busca para leitura, eis que ora uma, ora várias de suas obras, foram traduzidas nos seguintes idiomas: islandês, francês, sueco, inglês, italiano, albanês, russo, chinês, tcheco, hebreu, persa, alemão, lituano, ulcraniano, rumeno, ídiche, húngaro, servo-croata, sloveno, holandês, mongol, búlgaro, grego, slovaco, polonês, árabe, dinamarquês, norueguês, finlandês, além de adaptações para o cinema, teatro, rádio e televisão.
Tão extenso na unificação de sua verve, que escolhe duas datas num mesmo mês, 10 e 06 de agosto, respectivamente, para vir ao mundo e dele se despedir, porém de memória perene e eternizada.