João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos e talvez o que esteve mais próximo de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura entre os escritores nacionais, meu patrono nesta Academia, morreu há exatos 21 anos no Rio de Janeiro como sempre viveu: lutando.

Nascido em uma família de intelectuais de Pernambuco, demorou para que conseguisse se tornar ilustre até mesmo em casa. Seu irmão Evaldo Cabral de Melo Neto era um historiador de sucesso e o poeta tinha como primos também Manuel Bandeira e Gilberto Freyre.

Ainda adolescente quis ser jogador de futebol profissional. Chegou a ser meio-campista do time juvenil do Santa Cruz, que foi campeão pernambucano de 1935. Mas depois não avançou e se tornou apenas torcedor do modesto América do Recife, que só perdia.

Driblando problemas

João Cabral sofria de enxaqueca crônica desde criança. O problema o acompanhou por toda a sua vida. Para sanar as dores, ele tinha de tomar de três a dez Aspirinas por dia. A relação com o remédio o levou a homenageá-lo com a poesia “Num Monumento à Aspirina”.

Em uma entrevista, certa vez, disse que boa parte da sua inspiração provinha da amiga Aspirina e, para ele, o medicamento o salvava da nulidade. A associação com o remédio era uma alusão ao fato de sua poesia ser considerada cerebral e avessa ao sentimentalismo.

As dores de cabeça constantes o afastaram das badalações sociais. Mesmo antes de adoecer mais gravemente no final da vida e sendo diplomata, ele ia pouco a festas. Vivia em casa apenas com a mulher e a filha. Passava horas lendo e escrevendo solitariamente.

Odiava música, apesar de muitos de seus poemas terem musicalidade para se tornarem canções. Dizia que lhe doía os ouvidos. Curiosamente, Vinícius de Moraes, Caetano Veloso e Chico Buarque, cuja ligação com a música é grande, sempre foram fãs e amigos.

Isolamento social

O poeta chegou a ser escolhido para a Academia Pernambucana de Letras, mas nunca apareceu por lá, nem no dia da posse. Na Academia Brasileira de Letras, ele entrava mudo e saía calado. Seu amigo Lêdo Ivo dizia que ele nem conversava com os outros acadêmicos.

Certa vez, Clarice Lispector queria colocar “A veia no pulso” como título do seu livro. Perguntou a Fernando Sabino e ele odiou. Ela perguntou então a João Cabral e ele disse, disposto a cortar a conversa logo: está ótimo. Mas ela escolheu: “A maçã no escuro”.

Rejeitado pelos poetas da sua época por construir uma poesia diferente, com rigor formal e baseada em uma busca de arquitetura concreta e precisa para o fazer poético, evitando o sentimentalismo, João Cabral só foi aclamado em 1966 com “Morte e Vida Severina”.

O auto de Natal, feito às pressas para ser encenado no final do mesmo ano da encomenda, é a sua obra mais conhecida. João Cabral é ainda pouco lido no Brasil, embora seus 20 livros tenham sido traduzidos para vários países. Ler a sua obra exige dedicação e tempo.

Como bem disse 15 anos depois da morte do poeta, o principal especialista de João Cabral, em sua obra “Uma fala só lâmina”, Antônio Carlos Secchin, os 20 livros que ele escreveu inauguraram uma nova forma de fazer poesia no Brasil, que nunca mais será esquecida.

Vale a pena ler João Cabral, porque ele é dono de uma capacidade singular de descrever o mundo e as pessoas em redor, especialmente nas obras: “Morte e vida severina”, “Pedra do sono”, “A educação pela pedra”, “O rio” e “Quaderna”, que representam o conjunto.

As dores do fim

Apesar de ter sido reconhecido com importantes prêmios, como o Camões (1990), o Neustadt International Prize for Literature (1992) e Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana (1994) e ter sido sondado para o Nobel (1992/1999), João Cabral sofria para escrever.

As dificuldades do final advinham da trajetória marcada por transtornos físicos e psicológicos. Além da enxaqueca, teve polineurite, seguida de crises hepáticas, seguidas de alergia. Se sentia improdutivo e anotava ideias em pequenos papéis para depois tentava desenvolver.

O poeta se trancava no escritório para trabalhar as anotações e tinha um trabalho exaustivo de lapidação. Um poema poderia levar anos para atingir a forma final. Para ele, os primeiros livros saíam mais facilmente, mas os últimos foram tirados, como ele dizia, a fórceps.

O golpe maior na sua saúde foi a morte da primeira mulher Stella. Vítima de câncer, ela faleceu em 1986. Por 40 anos, era ela quem cuidava de tudo. Datilografava os poemas, ajudava na organização e colocava o terno e sapatos do lado de fora do banheiro para ele.

A morte dela tirou os rumos da vida de João Cabral. Ele passou meses deprimido no Rio de Janeiro até conhecer a poeta Marly de Oliveira, que era bonita, inteligente e refinada, além de 15 anos mais jovem. Após o luto, voltou a Portugal como diplomata e ligava de lá para ela.

Ligava diariamente e muitas vezes embriagado pedindo que ela o acompanhasse. Os muitos remédios tomados por causa dos problemas de saúde deixaram sua fala comprometida. Mas, admiradora do poeta, Marly aceitou e se casaram em 1986 mesmo.

Para a família dela, Marly anulou a sua carreira para se tornar uma enfermeira dele e terminou com a mesma depressão. Mas a família do poeta diz que ele ficou entregue às traças, porque ela passava o dia inteiro fechada no quarto, lendo literatura clássica.

Sem ver o mundo

Apelidado de homem sem alma na biografia escrita pelo crítico José Castello, João Cabral perdeu literalmente a alma de poeta e a sensibilidade para a vida nove anos antes do dia 9 de outubro de 1999, quando morreu, ao ficar cego e ter sido obrigado a se aposentar.

Além do trabalho que teve de deixar, a perda da visão, ocorrida por causa de uma doença degenerativa incurável, tirou do poeta as suas duas maiores paixões: ler e escrever. Seu último livro publicado saiu em 1990 sob o título “Sevilha Andando”, mas foi muito criticado.

Ele achava que a doença era um castigo muito violento que Deus lhe dera. Depois da cegueira, vivia enclausurado e com as janelas fechadas no seu apartamento, no Rio de Janeiro, que tinha vista para a Baía da Guanabara. A tevê lhe dava dor de cabeça. Então ele só ouvia rádio.

Como começara a fumar aos 69 anos, em 1989, e fumava até os dedos ficarem amarelados, desenvolveu uma úlcera. Para se livrar dela, já cego fez uma operação e foi proibido de beber. Por conta da depressão, fugia do apartamento para ir ao bar da esquina.

Lá, tomava vodca ou cachaça de má qualidade, o que o levou a cair em casa várias vezes e a se cortar, além de agravar o seu quadro de saúde, pois tomava mais de dez medicamentos controlados. Recebia poucas visitas e vivia apenas com a mulher.

Apesar de ateu, João Cabral dizia ter medo da morte. Ele ficara impressionado com a imagem do inferno que padres de um colégio onde estudou quando criança lhe mostraram. Outro temor era que, após a sua morte, sua obra fosse esquecida e ele também, por consequência.

Em uma das últimas visitas que recebeu, um ano antes de morrer, o poeta se encontrou com o músico, compositor e poeta Richard Serraria, na época aluno da Faculdade de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que fazia um trabalho sobre a sua obra.

Três anos depois dessa visita, Richard Serraria contou, em um bate-papo intitulado “Pedra do Sono e outras pedras fundamentais da poesia brasileira, da Palavraria, célebre livraria de Porto Alegre, uma curiosidade sobre a visita a João Cabral de Melo Neto: o último livro que ele leu.

Ou melhor, o último livro que leram para o poeta, já que ele estava cego. Quem lia eram a sua mulher e sua filha. A escolha foi por uma obra de Shakespeare. Ao ser perguntado das razões para essa escolha, João Cabral foi taxativo: não tenho mais tempo para apostas.

O poeta morreu por volta das 11h30 do dia 9 de outubro de 1999. Ele estava em seu apartamento no Flamengo, zona sul do Rio, e tinha 79 anos. Morreu de mãos dadas com sua mulher, Marly de Oliveira, e rezando, apesar de ter sido ateu durante toda a sua vida.

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Alice Cunha
2 meses atrás

Adorei conhecer seu blog, tem muito artigos bem interessantes. resultado