Para Leandro Thomaz de Almeida, convidado a falar no espaço do Momento Literário da reunião ordinária da Academia Saltense de Letras do final de semana, a literatura é o contraponto ideal ao mundo digital contemporâneo

 

O escritor e professor Leandro Thomaz de Almeida no início da palestra

“Considero um equívoco enorme e que pode gerar um efeito em cadeia extremamente danoso a cogitação da Fuvest de tirar a exclusividade da literatura na leitura obrigatória para o vestibular. Isto significa arrancar a importância da literatura, o que poderá fazer com que não se tenha mais razão para ensinar essa matéria nas escolas. Justamente a literatura, que é o contraponto ideal ao mundo digital em que vivemos por meio das redes sociais”, foi com essa frase que o escritor e professor Leandro Thomaz de Almeida, Cadeira 33 da Academia Saltense de Letras, patrono Luiz Castellari, iniciou a sua palestra sábado (17), logo após a reunião ordinária do mês dos acadêmicos.

Convidado a falar sobre o tema “A literatura no mundo digital contemporâneo” durante o “Momento Literário”, espaço criado pela atual diretoria para discutir literatura nas reuniões ordinárias da entidade, o escritor e professor fez uma longa exposição dos motivos pelos quais considera o equívoco, traçando um perfil da trajetória histórica da literatura nos dois últimos séculos e exortou os acadêmicos a trabalharem para divulgar a literatura entre os mais jovens, pelos benefícios que ela traz para a saúde mental e para a formação das novas e futuras gerações, sobretudo como instrumento para que o conhecimento ganhe espaço e se reproduza nesse segmento da sociedade.

Discussão provocou vários desdobramentos de opinião entre os acadêmicos que se envolveram no debate

A possibilidade de eliminação da exclusividade da literatura na leitura obrigatória para o vestibular ainda não tem data para entrar em vigor. Por enquanto é uma cogitação da Fuvest para fazer o que os seus organizadores chamaram de atualização ao que se vive atualmente. A mudança não tiraria a literatura, mas a sua exclusividade. Permitiria que a lista obrigatória de livros trouxesse livros de história, sociologia e ciências humanas em geral junto com a literatura. Essa mudança seria apenas para a Fuvest, mas, se adotada, vai impactar e provocar mudanças semelhantes em todos os outros vestibulares aplicados no país atualmente, na opinião do professor e escritor.

 

Visão especialista

Leandro Thomaz de Almeida, que estudou Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Sul e Letras pela Unicamp e fez Mestrado e Doutorado em Teoria e História Literária pela Unicamp, além de estágios de pesquisa na Universidade de Paris e na Universidade da Califórnia, disse que conheceu há pouco o trabalho do médico e neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis, considerado um dos vinte maiores cientistas em sua área no começo da década passada pela revista de divulgação Scientific American, e que ele tem uma teoria que explica bem os riscos impostos pelo momento atual dos impactos da cultura digital na formação e no conhecimento, com destaque para os mais jovens.

Na visão do escritor e professor, a literatura é o contraponto ideal para a tecnologia

De acordo com o especialista, que fez carreira nos Estados Unidos, o cérebro humano trabalha com a recursividade do pensamento, isto é, aquilo que se pensa e se expõe volta para o mesmo cérebro que emitiu e a repetição desse processo, passando pelos mesmos conceitos, ativa uma espécie de lavagem cerebral. Dessa forma, se o cérebro não for estimulado e tratado com ideias e conceitos novos, que se modificam conforme a situação, a tendência é que os seres humanos se aproximem do comportamento das máquinas, estabelecendo uma dependência de rotinas, principalmente aquelas formadas por sistemas pouco complexos que não exigem um trabalho mental mais intenso.

Para o escritor e professor, o que os recursos da tecnologia têm imposto fazem exatamente esse trabalho de desestimular o cérebro devido à forma como foram concebidos. “Tome como exemplo o celular e as redes sociais. O que eles trazem são informações fragmentadas, exibidas com velocidade e baixa complexidade, que estimulam constantemente o cérebro, mas sem uma retenção de qualidade. Um sistema que trabalha com a gratificação e que não experimenta a frustração como situação possível da vida. Tudo que se faz nas redes é compensado com cliques e repercussão e o indivíduo só fica onde é bem-tratado e recebe aprovação, evitando o que não dá certo”.

 

Desdobramentos

Leandro Thomaz de Almeida acredita que os estímulos da literatura são fundamentais para o ser humano continuar distante da máquina

Em contrapartida, a literatura cria mecanismos que estimulam o cérebro. “Ao contrário do celular, ler um livro exige paciência, pois demora muito mais que passear pelas redes sociais. Exige também memória. Se você lê um livro como eu estou lendo que tem quase mil páginas, vai precisar lembrar do que diz no início para entender o final. A leitura também envolve uma complexidade que é inerente a ela. Você precisa entender o contexto, saber sobre o histórico dos personagens e para onde a história vai conduzir. E, ao final, pode ter uma gratificação ou não. Isto é, você pode não gostar da conclusão do livro. Mesmo assim, todo o processo para chegar até lá terá valido a pena”.

A discussão sobre o assunto suscitou vários desdobramentos de opinião entre os acadêmicos. Para a presidente da Academia, Anita Liberalesso Neri, Cadeira 11, patrono Odmar do Amaral Gurgel, a preocupação do professor e escritor é pertinente e isto pôde ser percebido pelos desdobramentos. “A Academia tem uma variedade grande de profissionais e cada qual vê o processo pelo seu ângulo, o que enriquece as conclusões”, disse ela. Entre esses entendimentos a discussão passeou pela formação nas escolas, pelo ensinamento em casa e pela necessidade de se criar mecanismos que possam se interpor no caminho dessa formação das novas gerações.

Em um livro como esse que o escritor e professor está lendo de mil páginas, a memória é fundamental

Para Mônica Dalla Vecchia, Cadeira 5, patronesse Clarice Lispector, que é professora de língua portuguesa, as escolas insistem em um modelo que afasta o aluno da literatura. Mércia Falcini, Cadeira 3, patrono Paulo Freire, o erro maior está na falta de vivências do texto literário com os alunos. Quando os alunos leem juntos um romance, eles se interessam”. Para o ex-presidente da Academia, João Milioni, Cadeira 21, patrono Guimarães Rosa, esse é um processo que não tem volta, mas que precisa da ação de pessoas como os acadêmicos, que são formadores de opinião, para trabalhar a mudança.

 

Aplicações práticas

Valter Berlofa, Cadeira 27, patrono Luiz de Camões, entende que a formação começa em casa e que os pais têm um papel fundamental nesse trabalho também. Ele disse que não tem como fugir da realidade e lamentou, como o escritor e professor Leandro Thomaz de Almeida, o estágio de desprestígio que a literatura já enfrenta. “Nós que escrevemos precisamos valorizar os textos e fazê-los chegar aos leitores mais jovens combatendo esse processo mecanizado das redes sociais”. Décio Zanirato, Cadeira 22, patrono Fernando Pessoa, defendeu um aprofundamento da linguagem.

A ação proposta é introduzir a literatura de forma paulatina e constante

Na opinião de Leandro Thomaz de Almeida, a literatura é um exercício constante em, na, dá e sobre a linguagem. Por meio dela, se trabalha a comunicação que é fundamental em contraposição ao mundo digital de hoje. “Esse aparelhinho aqui (disse mostrando o celular) nos consome quatro, cinco, seis, sete, até oito horas por dia. Interagimos com ele mais tempo do que interagimos com as pessoas. Então a linguagem ganha uma importância enorme por conta da literatura. Senão, daqui a pouco, vamos esquecer como se conversa, como se relaciona presencialmente. A literatura ainda tem o poder de nos dar vivências de outros lugares e outras situações que jamais teríamos”.

A ação proposta pelo escritor e professor para fazer o contraponto da vivência digital de hoje em dia é uma maneira pela qual se pode introduzir a literatura de forma paulatina e constante. “Não adianta reagir com negação à tecnologia. No último quarto do século 20 e neste século 21 tivemos a presença avassaladora da tecnologia em nossas vidas e não podemos mudar essa situação. A tecnologia é importante para tornar o mundo atual menos difícil. O inconveniente é que ela traz outros problemas. Trabalho em duas escolas e uma delas permite que eu faça mudanças. Então eu faço. Na outra, faço menos, mas faço também. Esse é o caminho para a transformação. Precisamos fazer”, finalizou.

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