Quando eu era bem pequeno. Não que eu seja muito grande hoje. Mas vamos usar uma forma de medir aqui para que vocês entendam. Hoje eu estou da altura da cintura do meu pai. Quando eu era da altura da perna dele, ele foi embora de casa. Deixou aquela que me deu à luz para viver com outra que não tinha dado à luz ninguém. Ele disse que não gostava mais daquela que me deu à luz.

Eu fiquei muito triste. Aquela que me deu à luz era muito boa para mim. Ela fazia pé de frango para eu comer, que eu adoro. Mas o meu pai era o meu herói. Ele era grande e forte e me protegia de tudo. Eu não saia de perto dele quando ele vivia em casa. Meu pai era polícia e quando eu era menor ainda do que era quando ele foi embora, ele me deu uma farda e uma arma iguais as dele e eu caçava bandidos como ele.

Depois que meu pai foi embora para a outra casa, ele vinha me visitar toda semana. Ele dizia que me levaria com ele um dia. Mas aquela que me deu à luz brigou quando soube. Ela não queria. Meu pai disse que eu é que tinha de escolher. Ela não concordava. Batia no peito e dizia para mim: eu que te dei à luz. Seu pai não fez e não faz nada. Eu não entendia muito disso. Achava que ser polícia era fazer muito.

Um dia aquela que nunca tinha dado à luz teve um filho como eu. Meu pai disse que era a minha cara. E ele logo de cara morreu de amores por esse meu irmão. Eu confesso que não gostei. Aquela que me deu à luz ficou triste também. Ela me disse que as coisas iam mudar por isso. Disse que uma tal de pensão ia diminuir. Eu não entendi o que era. No outro dia ela brigou muito com meu pai por isso.

Depois meu pai começou a vir me ver menos vezes. Aquela que me deu à luz me deixava na casa de uma vizinha e ia trabalhar na casa de outra mulher. Ela se levantava bem cedo e chegava bem tarde. Além de trabalhar na casa dessa outra mulher, ela lavava roupa para outra mulher ainda. Ficava muito cansada e não brincava mais comigo como fazia desde que meu pai foi embora.

Um dia aquela que me deu à luz me levou a uma festa na casa daquela mulher para quem ela lavava roupa. Quando a gente estava voltando eu vi uma gatinha gritando na rua. Ela tinha muita dor. Eu disse para ela ajudar aquela gatinha. Ela disse que a gatinha sentia dor porque estava tendo um filhote. Eu disse: que nem você? Ela sorriu e fez que sim. Eu perguntei cadê o pai dos gatinhos? Ela não falou.

De tanto eu perguntar, ela disse que ele tinha ido embora. Na hora, eu pensei no meu pai. Eu chorei porque os dois gatinhos que nasceram não iam ter pai como eu. Eu perguntei para ela: por que o pai dos gatinhos tinha ido embora? Ela disse que ele deve ter ido atrás de outra gatinha que não deu à luz ainda. Eu não entendi aquilo. Será que dar à luz era alguma coisa assim tão ruim para eles irem embora?

Eu pedi que aquela que me deu à luz levasse a gatinha para casa. Ela disse que não podia e eu chorei muito. Como eu não parava de chorar, ela levou a gatinha e os filhotes. Eu dei o nome de Michelle para ela e de Zicão e Dito para os filhotes. Quando meu pai apareceu um dia para me ver, ele ficou bravo e jogou todos eles na rua. Eu chorei muito. Não gostei disso. Os filhotes ainda mamavam.

Meu pai não protegia mais, eu pensei. A Michele foi atropelada por causa disso. Depois não conseguia mais andar. Foi aquela que me deu à luz que pegou a gatinha de volta, curou os machucados dela e deu pé de frango para ela ficar forte. Eu perguntei para ela: por que ela fez isso? E ela disse que ela nunca abandonaria quem ela gostava. Ela falou com uma voz tão calma e baixinho. Achei bonito aquilo.

Só que depois fiquei pensando que meu pai não gostava de mim. Da Michelle e dos filhotes eu sabia que não gostava. Isso não era bom, mas eu não sabia como mudar. Eu vi que a gatinha também não abandonava o Zicão e o Dito. Mesmo sem andar, ela lambia os dois. Aquilo era uma coisa de que eles gostavam. Aquela que me deu à luz disse que quem ama cuida. Cuidar é proteger e dar carinho, disse.

O pai dos gatinhos nunca veio ver os filhotes. Meu pai também não vinha muito me ver. Aquela que me deu à luz disse que eu não devia ligar. Qualquer coisa que precisasse ela estava lá. Ela não brincava comigo, mas sempre me dava pé de frango. Eu perguntei para ela: por que os pais não davam à luz. Eu pensava que, se dessem, ela e as outras mulheres poderiam brincar com os seus filhos.

Então ela me disse que dar à luz é coisa complicada que homem não sabe fazer. Meu pai era muito grande e forte e não sabia dar à luz. Eu achei aquilo muito ruim. Mas achei que ela estava certa. Quando a Michelle morreu por causa de uma doença terrível que eles chamam de câncer, aquela que me deu à luz cuidou dos gatinhos Zicão e Dito como se eles fossem filhos dela, como eu sou.

Eu perguntei a ela: por que ela fez isso e ela disse: porque eu sou mãe e começou a chorar que nem eu. Foi a primeira vez que ela não disse que era porque tinha me dado à luz. Eu não sou muito grande ainda, mas entendi que ser mãe não é só dar à luz. Ser mãe é cuidar, proteger, dar carinho e, acima de tudo, não abandonar quem ela ama. Além disso, é garantir o pé de frango para o filho. Aí eu disse: obrigado mãe.

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Rosana Dalle Nogare
4 anos atrás

História triste, verdadeira e… ocorre diariamente. É uma truculência!!!

Marilena Matiuzzi
4 anos atrás

Eloy, o texto prende a atenção da gente do começo ao fim.
A história me tocou bastante por ser próxima da realidade que vivencio diariamente na condição de advogada que atua na área do Direito de Família.
Vc conseguiu nos trazer essa realidade sob o olhar da criança e a deixou muito sensível.
Muito bom!
Parabéns!
Obrigada

Elza
3 anos atrás

lindo. Eloy, como se chama seu pai? Como se chama aquela que nunca deu a luz? Voce morava no Rio? Uma curiosidade. meu email. nefertiz60@gmail.com, Elza