Texto publicado na edição de 04/09/2020 do Jornal Primeira Feira.
Coluna: um dedinho de prosa
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São João del Rei, em Minas Gerais, é uma daquelas cidades que você visita e se apaixona, não sai da memória. Foi uma viagem incrível que fizemos de moto no ano de 2018. Ali, como historiador, aprendi muito visitando as igrejas coloniais, a arquitetura das casas, viver a experiência de um patrimônio material e imaterial foi uma experiência rica e, com certeza, voltamos de lá diferentes.
A viagem para Minas foi um grande improviso, havíamos programado de ir para Santa Catarina, de carro. Todas as malas estavam prontas e, por um imprevisto, tivemos que mudar os planos. Um dia antes da viagem marcada, olhei para Paula, minha esposa, e falei: nunca fomos para Minas Gerais. Ela entendeu o que eu quis dizer e imediatamente tiramos as malas do carro, reduzimos a quantidade de coisas que levaríamos, amarramos algumas bagagens na moto e, logo na manhã do outro dia, já estávamos na estrada rumo à Minas Gerais.
Após uma noite em Campanha, uma cidade aconchegante, chegamos em São João del Rei. Era dia de jogo das quartas de finais da Copa do Mundo, Brasil x Bélgica, sabemos que o resultado não foi bom para o nosso lado. Descarregamos nossas coisas no quarto de uma pousada, um casarão do século XIX que serviu de moradia para o presidente da antiga ferrovia que ligava São João del Rei e São José del Rei, esta que conhecemos hoje por Tiradentes. Sentamo-nos em um barzinho perto da Igreja de São Francisco de Assis e ali ficamos durante os noventa minutos da partida.
Duas experiências não esqueço até hoje. Andando pelas ruas do centro histórico, nos deparamos com um concerto aberto no salão da Universidade de São João del Rei, era a formatura de um músico. Entramos e acompanhamos aquele evento do violinista. Quando acabou, saímos e fomos tomar alguma coisa na Taberna do Omar, fica na esquina da mesma rua e em frente à Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Pouco antes que a gente entrasse a Taberna, os sinos da Igreja começaram a badalar, bem alto. Aquilo mexeu comigo de uma tal maneira que foi impossível conter as lágrimas. O céu estrelado e a companhia da minha amada contribuíam ainda mais para deixar aquele momento especial.
No outro dia, era a novena de Nossa Senhora do Carmo, fomos acompanhar a missa. Não imaginava a surpresa que teria: as irmãs da Ordem Terceira entrando com os estandartes da Ordem e cantando o seu hino, como em uma procissão, andando pela Igreja até chegar ao altar. Mais uma vez a emoção foi grande. Ainda me pego cantando a música: “protegei nossa Ordem Terceira, ó Senhora do Monte Carmelo”.
São João del Rei é um dos primeiros lugares que voltaremos após a pandemia passar. É um lugar que nos proporciona boas memórias e muitas crônicas de viagens.
Bom fim de semana a todos!
FERROVIÁRIO, UM LEGADO FAMILIAR
Por Andrade Jorge
“TIN… TIN… TIN … LUZ VERMELHA NA ABOLIÇÃO,
CARRO, CHARRETE, LAMBRETA, GENTE, NADA SE MOVE,
NA PASSAGEM DE NÍVEL, ANTE A CANCELA: PARE, ATENÇÃO!
PORQUE VEM AÍ O TREM DA UMA E NOVE.”
A Rua Abolição, em Jundiaí/SP, tornou-se um símbolo, porque no final dela, após a casa de número 341 estavam as linhas dos trens na passagem de nível, onde meu velho pai trabalhava na Porteira, depois modernizou para Cancela; Digo que se tornou-se um símbolo, porque ele conseguiu, graças ao seu esforço, ser promovido a Porteiro e morar na casa da Cia. Paulista de Estrada de Ferro, ao lado de seu trabalho. Por que elevo o fato a um grande feito? Para alguém pouco letrado, e que por vários anos trabalhou sob sol e chuva na chamada “soca” das linhas dos trens, sim foi um grande feito. E a casa da Paulista na Rua Abolição 341 foi o troféu, a expressão máxima da conquista do Sr. Benedito Jorge, carinhosamente conhecido por Didi.
Eu tinha dez anos quando mudamos para aquela casa, e lá vivi por vinte anos, cresci com o som estridente dos apitos das máquinas azuis da Paulista, ou do seu barulho característico:
“TARRAN TARRAN, TARRAN TARRAN, SÃO OS RANGIDOS
DAS BITOLAS SOB AS RODAS DA COMPOSIÇÃO,
ECOS DE TEMPOS IDOS,
ACORDES DE UMA FERROVIÁRIA CANÇÃO.”
Um tempo de magia na vida daquele menino, que fazia do quintal de sua casa um mundo de sonhos e fantasias, e somente voltava à realidade quando um trem passava, aí outra fascinação tomava conta, mas havia um horário de trem que o encantava, era o trem passageiro da Uma e Nove.
“A COMPOSIÇÃO ESTÁ NO SEU FINAL,
QUANDO ALGUÉM AO MENINO ACENA,
ESTE DE IMEDIATO RESPONDE AO SINAL,
E PENSA “AINDA HEI DE FAZER ESTA CENA!”
E o tempo passou, como tudo passa nesta vida, mas ficou marcado no íntimo do menino, e quando adulto, tentou matar a saudade
─ “UMA PASSAGEM, POR FAVOR,
A RESPOSTA ME COMOVE:
─ NESTE HORÁRIO, NÃO SENHOR!
JÁ NÃO EXISTE MAIS O TREM DA UMA E NOVE.”
A minha convicção, em ser um ferroviário, desviou-se feito as linhas dos trens, que nos levavam para todos os lados, também segui outros caminhos, não fiz a cena e nem fui ferroviário.
Entretanto, o velho Didi, não ficou marcado somente em mim, seu filho, o legado e orgulho de ser “Ferroviário” ele deixou para sua neta, minha filha Luana Martins Andrade Jorge.
É notório a vibração dessa mulher-menina, e o encanto que ela tem pela ferrovia, verdade que já não tem mais o charme de outrora, mas é a ferrovia em ação nos trens da CPTM, empresa que ela trabalha.
Aqueles que nutrem de sua amizade, e a acompanham pelas redes sociais podem notar seus comentários e fotos a respeito, e o orgulho que ostenta ao vestir sua farda de ferroviária para trabalhar nas Estações no trecho Jundiaí/São Paulo.
Fico orgulhoso também, e o velho Didi hoje deve estar sorrindo…. afinal avô e neta merecem os parabéns, ele por ter sido e ela porque é ferroviária.
Luana, você tem duas paixões: Ferrovia e Literatura, ferrovia como já salientei herdou de seu avô, e a literatura está em tuas veias como estão nas minhas. Conseguiu agradar Avô e Pai,
“Avôhai! Como canta Zé Ramalho”
Notas do Autor:
1) O Dia do Ferroviário é comemorado no dia 30 de abril, foi nessa data, em 1854, que foi inaugurada a Estrada de Ferro Petrópolis, também conhecida como Estrada de Ferro Mauá, primeira linha de ferro brasileira.
2) O termo “soca” era o trabalho executado ao longo das linhas de trens, na fixação dos trilhos, e dormentes e a colocação das pedras.
3) Os versos citados são da poesia “O trem da uma e nove da Paulista” de minha autoria
Foto Benedito Jorge e Luana M. Andrade Jorge
30/04/2020
Texto publicado na edição de 28/08/2020 no Jornal Primeira Feira de Salto.
Coluna: Um dedinho de prosa
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Quando estou assistindo televisão na sala de casa, olho para a estante e vejo ali, enfeitando o local, um copinho de tomar ginjinha. Ginja é um tipo de cereja muito cultivado na Europa. Aquele pequeno copo, é também um objeto de memória, memória de uma incrível viagem que fiz com a minha esposa à Portugal e, mais especificamente, memória de uma cidade chamada Óbidos.
Em uma manhã nublada, partimos de Lisboa em direção a Óbidos, aliás, um fato curioso aconteceu antes mesmo de entrarmos no “autocarro”, como chamam os ônibus por lá, pois bem, os cidadãos lisboetas são um pouco, como posso dizer, rigorosos com a língua vernácula, em outras palavras, muitos levam alguns termos que para nós, brasileiros, são tão comuns, ao “pé da letra”, e ao pedirmos informações sobre qual ônibus exatamente deveríamos pegar para chegar em Óbidos, para um do policiais que estava conversando na rodoviária, aproximei-me e disse:
– Senhor policial, bom dia! Queremos ir a Óbidos… – imaginei que, como acontece aqui no Brasil, eu receberia de imediato algumas orientações. Após a pergunta, um silêncio de alguns segundos ficou no ar, até que ele, com um riso de lado, respondeu:
– Ok, boa viagem!
Naquele momento, Paula e eu nos olhamos, constrangidos, enquanto o policial e seu colega de trabalho riam alto. No momento não achamos graça, algum tempo depois rimos alto também. Bom, após os dois policiais darem boas risadas, ele nos explicou como proceder para chegar na cidade medieval.
Isso mesmo, Óbidos é uma bela de uma cidade medieval, com suas ruas e casas, suas várias Igrejas e toda aquela vida urbana acontece dentro das muralhas. É uma cidade cercada. Descemos em um ponto de ônibus a alguns metros de distância da entrada, um arco que deve passar no máximo duas pessoas lado a lado. Espetacular. Andamos pelas ruas, entramos em Igrejas, em livrarias e em Igreja que se tornou livraria. A fachada se mantinha como Igreja, dentro eram comercializados os livros.
O tempo nublado deu aspecto ainda mais medieval para a cidade, todo aquele imaginário que permeia nossas mentes quando pensamos em tal período, imaginário esse que discuto com os alunos para introduzir o assunto, nos veio à mente.
Em uma das lojas que entramos, nos foi oferecido o licor de ginja, em um copinho de chocolate. Tomamos, rimos, andamos e imaginamos. Óbidos nos proporciona boas memórias, me proporcionou esta crônica de viagem.
Bom fim de semana a todos!
Texto publicado na edição de 21/08/2020 do Jornal Primeira Feira.
Coluna: Um dedinho de prosa.
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Dentro do turbilhão de sentimentos diferentes que a pandemia nos vem proporcionando, um deles é a saudade. Tal sentimento aparece quando lembramos de coisas simples que fazíamos no dia a dia antes de aparecer o vírus que virou o mundo de cabeça para baixo. Saudade de pessoas que não podemos ver devido ao isolamento social, ficando limitado a realizar chamadas por vídeo que nos proporciona um momento de alegria em rever aquele familiar querido. Saudade de jogar um futebol com os amigos ou tomar um café em uma padaria. Para nós, professores, saudades de estar presencialmente em uma sala de aula junto aos alunos ou ainda dos momentos que, de certo modo, envolve a escola. Ou as escolas.
Meu dia a dia de trabalho envolvia o deslocamento em três cidades: Cabreúva (onde moro), Porto Feliz e Itu. Sem contar as visitas semanais à Salto para pesquisas no Museu Municipal e na Biblioteca da cidade ou prosas com a Dona Neusa da Banca da Matriz. Saudades também dos domingos no Museu da Música – Itu, de receber o público que visita a cidade e o Museu.
Saudade das reuniões presenciais da Academia Saltense de Letras. Enfim, saudades daquilo que dá prazer e alegra a alma. E o que dizer das viagens? Bate um sentimento de nostalgia. A gente aprende cada coisa, vive experiências tão marcantes, algumas que nos ensinam, outras que nos emociona, outras ainda que são desafiadoras.
Nas próximas semanas, gostaria de iniciar uma sequência de textos sobre algumas experiências vividas que deixaram algum tipo de emoção e aprendizado. Vamos prosear um pouco sobre viagens, história, causos e tudo aquilo mais que a memória permitir.
Um bom fim de semana a todos.
Agradecer é um gesto que nos incomoda, porque temos de nos colocar em uma posição de vulnerabilidade.
Mas é de suma importância agradecer por tudo o que temos. Isto nos faz mais gente e transforma a vida de quem nos rodeia.
O agradecimento sincero encoraja quem nos auxilia a continuar ajudando outros que precisam tanto quanto nós.
Quando agradecemos o que nos é dado, prestamos mais atenção ao que recebemos e colocamos importância no que nos é entregue.
É dessa maneira que valorizamos o outro e que dizemos o quanto aquilo que foi feito nos impactou positivamente em nossas vidas.
O ato de agradecer gera também confiança de quem nos ajuda de que somos pessoa em quem se pode acreditar. Só quem sabe o tamanho do gesto feito em seu favor pode agradecer com sinceridade.
É fundamental ainda agradecer por aquilo que nos tiraram.
Pode parecer um paradoxo agradecer o que nos tiraram, mas não é. Nem sempre o que nos tiram é perda.
Muitas vezes -e olhe que muitas vezes mesmo- não é perda: é livramento de coisas ruins que cercavam a nossa pessoa.
Não pense que perdeu. Ao contrário, pense no que envolve o que tinha. Se aquilo te fazia bem ou se te prendia.
Muitas vezes nos deparamos com situações que jamais gostaríamos ou quereríamos viver e aquilo nos é tirado.
No primeiro momento, a impressão é de que perdemos.
Depois, concluímos que fora um livramento.
Agradecer neste caso nos faz mais experientes.
Perguntaram pra mim se ainda gosto dela. Respondi: Tenho ódio e morro de amor por ela.
Esse refrão fez muito sucesso na voz de Leandro e Leonardo em 1989, mas ele só é bom para a música.
Na vida real, ninguém quer viver assim.
O problema é que muita gente vive dessa maneira.
Esses são os relacionamentos tóxicos.
Eles começam com uma paixão muito intensa e depois passam a insultos, elogios falsos, agressões físicas. Alguns terminam até em crimes, os famosos feminicídios.
Não existe razão para viver desse jeito, mas as pessoas não conseguem perceber aonde chegaram e nem o quanto se prejudicaram e muitas vezes vão até o final.
Temos de nos perguntar sempre se nos sentimos felizes no relacionamento em que estamos.
É claro que não dá para ser feliz o tempo todo, mas o inverso também vale: não dá para não ser o tempo todo.
Quando as brigas se tornam rotina, elas alteram como a pessoa se sente com ela mesma. Ela deixa de se sentir segura e não se vê diferente de uma porcaria.
As agressões verbais passam a ferir cada vez mais.
A sensação é de que não se é suficiente para o outro.
A pessoa se veste diferente do que está acostumada para agradar e não se encontra em roupa nenhuma.
Se isto tudo ocorre, é hora de ver o que se sente antes de ver o outro. Frio na barriga não dá depois de algum tempo, mas não rola ter ansiedade, desconforto, medo.
Não podem acabar as mensagens, o beijo, o eu te amo.
Drummond dizia: Quero que todos os dias do ano, todos os dias da vida, de meia em meia hora, de 5 em 5 minutos me digas: Eu te amo. Ouvindo-te dizer: Eu te amo, creio, no momento, que sou amado.
Isso é fundamental para ser feliz.
Existe vida depois do coronavírus?, essa é a pergunta que todos estamos nos fazendo, não é?
E a resposta não me veio de pronto. Sabe por quê? Porque não tenho uma resposta para aquilo que não aconteceu ainda. Você consegue pensar com exatidão naquilo que não aconteceu?
Conseguimos imaginar apenas.
Então fiquei pensando em toda a minha vida. O que fiz de bom nesta vida? Existe algo?
Os pensamentos foram acontecendo.
Eu consigo me lembrar de ter feito coisas boas sim. Todos nós fazemos coisas boas na vida, não é?
Fiquei feliz de lembrar disso.
Mas depois me dei conta de que tudo que fiz de bom não muda minha vida agora.
E sabe por quê?
Porque isto já aconteceu. Eu preciso de respostas para hoje. O que será do meu dia hoje?
O meu dia será o que eu quiser que ele seja.
Será de angústia se pensar depois do coronavírus. Ou será de alegria se pensar no que fiz de bom.
Mas será, sobretudo, feliz se eu pensar que posso mudar o meu destino.
E eu posso.
Todos nós podemos.
O que é o sonho?
É um pensamento sobre aquilo que desejamos.
Se pensarmos com energia como quem imagina as férias dias antes de elas acontecerem, vamos realizar esse pensamento, esse sonho.
Então eu penso que o dia hoje é maravilhoso e divido esse dia com você.
Quero que mentalize no milagre desse dia. Hoje é tudo que temos e é um conjunto fantástico.
Vamos viver, porque viver é incrível, inigualável e inesquecível.
– Se alguém souber de alguma coisa que possa impedir este casamento, que fale agora ou cale-se para sempre.
Um silêncio tradicional começava a se ensaiar após a frase do padre, mas não durou muito para ser quebrado.
– Eu tenho padre, eu tenho.
O homenzinho sem muita expressão física, mas com uma voz de locutor, disse e se encaminhou para o altar.
Puxava a perna esquerda, porque ela não dobrava, o que dificultava seu caminhar.
Todos os convidados, o padre e o casal viraram-se para ele a fim de conhecer quais eram as razões que tinha.
Mas ele não disse antes de chegar ao altar, causando uma angústia enorme.
– Quem é ele?, perguntou o noivo.
– Não faço a mínima ideia, disse a noiva.
Quando chegou finalmente ao altar, o homenzinho voltou-se para o padre:
– Rosa não pode se casar com este homem, porque não é uma mulher.
Os cochichos que todos vinham trocando enquanto ele caminhava se tornaram vozerio como se a igreja fosse um bar.
O rosto de Rosa esquentou e avermelhou-se instantaneamente.
– Este homem é um louco, disse ela.
Roberval, o noivo olhou intrigado para a noiva querendo uma explicação.
– O nome dela é Jeferson. Ela nasceu em um sítio em Porto Feliz. Nunca quis ser homem, mas o destino fez assim.
– O senhor não pode dizer essas barbaridades sobre a minha noiva.
– Posso sim, porque eu sou o companheiro do Jefferson.
Mais vozerio e a igreja já não tinha clima para continuar aquele casamento.
Ao ouvir a declaração do homenzinho, Rosa deixou o altar chorando e correndo em direção à porta de entrada da igreja.
– Explique-se, por favor, disse o padre.
De repente, ouviu-se um tiro que acertou o lustre do meio da igreja.
Disparado por um homem mais velho que o primeiro, que estava na porta.
As pessoas se abaixaram com medo. Algumas correram em direção às portas laterais. Outras tentaram se esconder atrás do altar e do próprio padre.
Acostumado a ter dificuldades com alguns dos fazendeiros da região, o padre não se intimidou com o disparo.
– Onde o senhor pensa que está seu José? Não pode atirar dentro da igreja. Olhe o que fez com o lustre?
– Veja quanto custa o lustre e eu pago, disse o homem que atirou.
– Com certeza farei isto, mas não pode atirar assim na casa de Deus…
– Cale a boca padre.
Seguiu-se um oh em uníssono dos convidados, que tinham se calado alguns minutos antes com o tiro.
– Por que o disparo?, insistiu o padre.
– Porque isto aqui estava um mercado de peixe e eu estou sem paciência.
– Olhe, isto tudo está muito confuso. Minha noiva saiu nervosa. Esse homem está dizendo bobagens. O outro atirando. Para mim chega, padre.
O noivo também deixou a igreja.
– Bom, seu padre, acho que não tenho mais nada a fazer aqui, disse o homenzinho com voz de locutor, já saindo.
– Não senhor. Quero que explique essa história. Não nos deixe sem saber.
– Já disse tudo: Rosa é Jeferson e vive comigo. Portanto, não pode se casar com outro homem. Eu não poderia deixar.
O homenzinho começou a se encaminhar para a porta por onde entrou.
– E o senhor, senhor José? Por que fez o disparo? O que tem a ver com esse casamento ou esse quase casamento?
– Padre, eu vim para atestar o que o Mané disse sobre a noiva. Conheço os dois, porque eles moram na minha fazenda. Esse noivo apareceu por lá faz um tempo e se engraçou com a noiva.
– Bem, então não teremos casamento. Todos podem se retirar, disse o padre.
Só o homem que atirou foi embora.
Ninguém mais se mexeu do lugar.
Até que se ouviu um novo disparo. Depois outro. Um terceiro e um quarto.
Todos foram à porta da igreja para ver.
– Peguem esses dois, peguem, gritou o homem que havia atirado na igreja.
Os dois eram o noivo e a noiva. Eles estavam em dois cavalos que saíram em disparada. Fugiram assim que o homem que atirou na igreja deu a ordem.
Ao lado dele o homenzinho com voz de locutor estava estatelado no chão, alvejado por dois tiros no peito.
Os outros dois tiros haviam sido disparados pelo homem que deu a ordem para a perseguição, mas não atingiram ninguém nem impediram a fuga.
Vários capangas do mandante seguiram a ordem e perseguiram o casal.
– Eu não disse, seu padre. Esse noivo não é boa gente. Roubou o companheiro do meu caseiro e ainda o matou.
– Não é verdade, gritou uma mulher miúda, com pescoço comprido e fala fina.
– Quem é a senhora?, quis saber o fazendeiro que havia atirado na igreja.
– A mãe do noivo. Estou aqui para atestar que meu filho e Rosa não se juntaram quando Roberval foi a sua fazenda. Eles já eram apaixonados desde criança.
– O quê?, perguntou o fazendeiro.
– Sim, adotaram um menino até. Estava tudo certo até esse homenzinho aparecer. Ele descobriu que Rosa era transexual e ameaçou contar isso a todo mundo. Foi isto que separou o casal. Mas a Rosa nunca viveu com esse aí por vontade. Ele a manteve sob cárcere privado todo esse tempo e afastou o meu filho. Até que ele foi atrás dela e a salvou desse carrasco.
– Não acredito.
– Pois acredite. Agora, meu filho vai poder viver a sua história de amor. Roberval e Rosa serão muito felizes.
– Até serem presos, pode ter certeza.
– Veremos.
E nunca mais o casal foi visto na região.
Acredita-se que estejam vivendo felizes para sempre, mas isto é um segredo.
As gotas de suor percorrem o rosto como sangue.
Por que sangue? O que fazia Nice pensar em sangue? Talvez por escorrerem da cabeça, do meio dos cabelos.
O suor sai das axilas, dos poros do rosto, do pescoço. Não dos cabelos. Nem nos dias mais quentes vivera suor assim.
Não conseguia ver o líquido por estar com os olhos vendados: só lhe restava imaginar o que seria.
Parecia sangue, porque era quente e viscoso e porque cheirava a ferro, um cheiro forte de ferro.
– Estou sangrando. Preciso de ajuda. Deve ser um ferimento na cabeça. Por favor, me ajudem.
O seu interlocutor aproxima o que ela imagina ser um revólver pela dureza, forma pontuda e por estar frio.
– Fique quieta agora ou vai ficar quieta para sempre.
– Eu só estou pedindo ajuda por estar sangrando.
Ela sente o calor do corpo dele próximo. Deve ser gordo e de barba. Por que essa impressão? Gordos exalam calor quando o tempo está quente. A barba é pelo jeito de falar. Parece que o som sai mascado, seco.
– Você entendeu?
Nice resolve não reagir.
Sua situação já não estava boa. Não sabia onde estava, com quem e nem o que fariam com ela.
Desde que fora ameaçada por um revólver e tivera a cabeça coberta por um capuz sem ter tempo de ver quem a ameaçava, a não ser que era um homem alto, magro, loiro e de cabelos bem curtos, ela estava em pânico.
Eles a agarraram na saída faculdade em plena luz do dia.
A cada minuto as coisas só pioravam.
Agora era aquele sangue escorrendo e cheirando a ferro.
Mesmo assim, o homem que a ameaçara foi verificar o suposto ferimento, mas sem tocá-la.
Por isso, ela não sabia até que ele desse o veredicto.
– Você não está sangrando coisa nenhuma.
– Não?
– Ao menos não onde pensava.
– Como assim?
– Você está menstruada só.
– Meu Deus.
– Vou arranjar um absorvente e você coloca.
Nice não agradeceu.
Estava envergonhada.
Passou a imaginar como estaria a sua calça, se o sangue era visível externamente, se conseguiria ajeitar.
O homem a deixou com seus devaneios.
Algum tempo depois ele estava de volta.
Tirou a venda dos olhos dela.
Ele estava com um capuz.
Mandou que ela colocasse o absorvente no banheiro.
Mesmo sem ver o rosto dele, percebeu que sua intuição estava correta: era gordo. Só não sabia se tinha barba.
Devia ter, já que o capuz não se ajustava ao rosto.
No banheiro, percebeu uma parede gasta, um vaso sanitário sem tampa e um fedor de rodoviária.
Aquele banheiro não era lavado havia muito tempo.
Voltou para o cômodo contíguo e olhou rapidamente o ambiente antes que lhe colocasse a venda de novo.
Era uma casa simples, as paredes manchadas, os móveis velhos, muita poeira e uma geladeira azul.
Infelizmente a calça havia sido manchada.
– Por que me trouxeram aqui?
– Você é o nosso passaporte para a festa.
– O quê?
– Chega de papo.
Depois de algum tempo de silêncio assim que o homem que lhe trouxe o absorvente foi embora, voltou a ouvir.
Eram duas ou três pessoas.
Elas cochichavam e riam.
O que será que as levava a isso?
Talvez a calça manchada.
Não, a situação ali era muito mais grave. Mas, se eram sequestradores, por que não pediam detalhes a ela? Talvez por já terem tudo. Será?
Nice não era rica, mas sua família tinha uma boa situação financeira. Ela frequentava uma boa faculdade, tinha o próprio carro, comia em bons restaurantes, viajava.
Desde que conhecera Rui, o seu namorado, havia seis meses, já fizera pelo menos três viagens internacionais.
– O que vocês vão fazer comigo?, gritou para medir qual a distância que as pessoas estavam dela.
– Cale essa boca ou vai se arrepender.
Era uma voz de homem e ele estava irritado pelo tom.
Calou-se.
A angústia maior era não saber de nada do que estava acontecendo. Um sequestro muito bem planejado pelo jeito. Será que seus pais pagariam o resgate?
É claro que pagariam, ela mesma responde.
Jamais seus pais a deixariam morrer nas mãos de sequestradores perigosos e agressivos como aqueles.
O medo de ser morta a fazia delirar sobre o que perdia.
Triste o sequestro ocorrer justamente na véspera do seu aniversário. Ela não teria tempo de preparar a festa. Não teria presentes, abraços, beijos, nada mais.
Logo ela que sempre gostou de festas.
Pensar em festa agora era uma grande bobagem.
Talvez não tivesse mais festa alguma na sua vida. Os seus 22 anos estavam ali nas mãos daqueles sequestradores. E poderiam não sair mais daquela casa, do banheiro fedido.
Tanto que desejou fazer 23.
Lembra-se agora do namorado. Rui devia estar muito preocupado. Quando começaram a namorar, ele prometera que sempre a protegeria.
– Nada vai te acontecer, porque eu estarei do seu lado.
Era um homem sensível, inteligente, másculo.
Sabia fazer uma mulher se sentir bem na sua companhia.
O seu diferencial era nunca ser monótono.
Se pensava que ele estava triste, de repente tirava da cartola uma festa e eles dançavam, bebiam, riam.
Se pensava que ele estava preocupado, do nada ele tirava da cartola uma paz de buda e a fazia meditar com ele.
Era um homem surpreendente.
Quando ele lhe deu um anel com pedras de esmeraldas, ela não acreditou: não pelo presente, mas por ele vir dentro de uma concha do mar e servido com mariscos.
Eu quase comi o anel, ela se lembra contando para a família na volta da viagem que fizeram à Polinésia Francesa.
O passeio pelo conjunto de cinco arquipélagos próximo da Nova Zelândia, no meio do Pacífico, fora mágico.
Um tiro, seguido de mais um e um terceiro, este mais próximo dela, acabaram com os seus devaneios.
– Vamos, disse a mesma voz de homem de antes.
Nice foi agarrada pelos braços pelo homem e provavelmente pelo gordo do absorvente.
– O que aconteceu? Para onde vão me levar?
Eles a colocaram no carro e dirigiram por minutos intermináveis. Não falavam nada. O som do motor era insuportável. Nice achava que a estavam levando para morrer pela forma como a tiraram da casa.
Provavelmente o resgate não fora pago.
Ela suava frio e tremia muito.
– Chegamos, disse o que ela supunha ser o gordo.
– Onde? Vocês vão me matar? O que vão fazer?
– Eles não, mas eu vou.
Essa voz ela conhecia: era o Rui, mas não tinha certeza.
O medo não permitiu que ela segurasse a urina.
Para quem já estava com a calça manchada de menstruação, o xixi era o de menos.
Mas quando tiraram a venda, Nice viu que, em vez de um paredão de atiradores ou de torturadores, havia gente por todo lado, muito bem vestidos, rindo e aplaudindo.
Então começou a tocar “Always”, com Bon Jovi, e detrás dela surgiu Rui com um buquê de rosas nas mãos.
– Feliz aniversário, meu amor.
Para que time você torce?
– Eu?
– É, você.
– Eu torço para quem é o melhor.
– Ah tá e quem é o melhor?
– O melhor? O melhor é… O melhor é o meu time.
– Você é bobo.
Eu era mesmo, afinal o único menino da escola que não tinha um time para torcer era eu.
Culpa do meu pai que não torcia para nenhum time.
Naquele tempo, no início dos anos 70, não ter um time para torcer significava ficar de fora de quase tudo.
Por isso, eu precisava arranjar um urgentemente.
Mas não poderia ser uma escolha aleatória. Os meninos perguntavam um monte de coisas sobre os times. Se não soubesse, ficaria claro que não torcia de verdade.
Eu não sabia como escolher.
Estava pensando em como fazer, quando minha mãe me mandou buscar pão e leite na padaria perto de casa no Bela Vista, bairro aonde fomos morar quando nos mudamos de Indaiatuba para Salto, um ano antes.
No caminho, passei em frente a um bar quase vazio.
Havia lá dois homens e o dono apenas, um homem miúdo de orelhas muito pequenas, que não escutava direito.
Mas o que me chamou a atenção no lugar foi um baleiro grande de vidro cheio de balas de amendoim.
Eu adorava balas de amendoim.
Entrei para comprar algumas.
Ao me ver, o dono do bar quis saber logo:
– Para que time você torce?
– Eu?
– É, você.
– Eu torço para quem é o melhor.
– Ah tá, então não tem um time?
Fiquei vermelho na hora.
Ele havia descoberto o meu segredo. Parecia bem mais esperto que os meus colegas da escola. E agora?
– Se não tem um time, quer que eu o ajude a escolher?
Aquilo parecia uma sorte muito grande para mim.
– Eu não posso escolher um time assim, reagi.
– Por que não pode?
– Porque eu preciso saber tudo do time, senão os meus amigos vão perceber que eu comecei a torcer só agora.
– Ah, mas isso não é problema. Eu vou contar para você todas as glórias e conquistas do Palmeiras.
– Palmeiras?
– É, Palmeiras. Você quer torcer para o Palmeiras?
– Eu não sei. Ele é bom?
– Ele é o melhor.
– Então é o meu time: eu torço para o melhor.
Assim, aquele dono de bar me mostrou tudo de mais importante que ele conhecia sobre o Palmeiras, fiquei conversando com ele lá por uma hora ou mais e ele me deu uma porção de balas de amendoim e um chaveiro pequeno e verde do Palmeiras, que eu levei para casa como um troféu.
Minha mãe ficou brava pela demora, mas valeu a pena.
No dia seguinte, contei na escola que eu tinha um time.
– Para que time você torce?, perguntou um dos meninos.
– Eu?
– É, você.
– Eu torço para quem é o melhor.
– Ah tá e quem é o melhor?
– O melhor? O melhor é o Palmeiras. Meu time já foi campeão mundial em 1951, foi campeão brasileiro por quatro vezes e foi campeão paulista por 15 vezes.
– Uau, você torce mesmo.
Em seguida, mostrei o chaveiro e se formou um círculo em torno de mim para ouvir as histórias do Verdão.
Todo mundo ficou encantado, porque eu sabia muito.
A partir dali passei a me interessar por tudo que havia sobre o Palmeiras e a acompanhar o time.
Quando meu filho nasceu, eu disse:
– Vai ser palmeirense.
Mas depois achei melhor deixar que ele escolhesse. De qualquer forma, estaria ali para falar do Palmeiras.
Assim que começou a jogar futebol comigo em casa, ele me perguntou bem sério:
– Para que time você torce pai?
E eu disse com orgulho:
– Palmeiras.
– Então eu também vou torcer para o Palmeiras.
A declaração soou como um hino.
Um dia quando ele ainda era menino fomos ao estádio do Ituano para assistir Palmeira e Ituano.
Era a primeira vez que ele ia a um estádio.
Com medo de que pudesse ocorrer alguma briga que o colocasse em risco, comprei cadeiras numeradas.
O custo era quatro vezes maior que o da geral, mas o problema mesmo é que só torcedores do Ituano tinham acesso às cadeiras e nós ficamos no meio deles.
O jogo começou e o Palmeiras fez o primeiro gol.
Meu filho pulou, gritou, vibrou e festejou como se estivesse em casa, mas os torcedores do Ituano ficaram de olho grande. Como eram senhores já, relevaram o entusiasmo do menino. Eu festejava por dentro só.
O Ituano empatou e todos os torcedores pularam a nossa volta, mas meu filho começou a dar socos na cadeira.
– Segura o menino pai. Ele já está na torcida errada. Se continuar assim, vai se dar mal.
Eu o acalmei e continuamos vendo o jogo.
O Palmeiras voltou a ficar na frente.
De novo, meu filho fez aquela festa.
Os mais próximos se irritaram e queriam nos tirar de lá.
Discuti com eles, porque tinha pago caro pelas cadeiras.
Ficamos.
Mas o clima continuou tenso.
Os torcedores do Ituano só se acalmaram quando o time deles empatou novamente.
Resultado: paguei quatro vezes mais para não pegar uma briga, quase apanhamos e ainda não vencemos.
Mais tarde, quando meu filho já era adulto, fomos juntos ao estádio do Palmeiras, o Allianz Parque.
E o Palmeiras venceu o Fluminense por 2 a 1 pela Copa do Brasil, mas aí estávamos na torcida do Palmeiras.
Neste dia 26 de agosto, quando o Palmeiras completa 106 anos de fundação, tenho mais orgulho ainda de dizer que eu tenho um time para torcer.
O Palmeiras é o “Campeão do Século 20”.
Venceu 10 Campeonatos Brasileiros (o maior vencedor da história), 3 Copas do Brasil, 1 Libertadores, 1 Mundial, 23 Paulistas, 5 Rio-São Paulo e 2 Brasileiros da Série B.
Por isso, quando me perguntam para que time você torce, eu respondo como fazia aos nove anos:
– Eu torço para quem é o melhor.