As gotas de suor percorrem o rosto como sangue.

Por que sangue? O que fazia Nice pensar em sangue? Talvez por escorrerem da cabeça, do meio dos cabelos.

O suor sai das axilas, dos poros do rosto, do pescoço. Não dos cabelos. Nem nos dias mais quentes vivera suor assim.

Não conseguia ver o líquido por estar com os olhos vendados: só lhe restava imaginar o que seria.

Parecia sangue, porque era quente e viscoso e porque cheirava a ferro, um cheiro forte de ferro.

– Estou sangrando. Preciso de ajuda. Deve ser um ferimento na cabeça. Por favor, me ajudem.

O seu interlocutor aproxima o que ela imagina ser um revólver pela dureza, forma pontuda e por estar frio.

– Fique quieta agora ou vai ficar quieta para sempre.

– Eu só estou pedindo ajuda por estar sangrando.

Ela sente o calor do corpo dele próximo. Deve ser gordo e de barba. Por que essa impressão? Gordos exalam calor quando o tempo está quente. A barba é pelo jeito de falar. Parece que o som sai mascado, seco.

– Você entendeu?

Nice resolve não reagir.

Sua situação já não estava boa. Não sabia onde estava, com quem e nem o que fariam com ela.

Desde que fora ameaçada por um revólver e tivera a cabeça coberta por um capuz sem ter tempo de ver quem a ameaçava, a não ser que era um homem alto, magro, loiro e de cabelos bem curtos, ela estava em pânico.

Eles a agarraram na saída faculdade em plena luz do dia.

A cada minuto as coisas só pioravam.

Agora era aquele sangue escorrendo e cheirando a ferro.

Mesmo assim, o homem que a ameaçara foi verificar o suposto ferimento, mas sem tocá-la.

Por isso, ela não sabia até que ele desse o veredicto.

– Você não está sangrando coisa nenhuma.

– Não?

– Ao menos não onde pensava.

– Como assim?

– Você está menstruada só.

– Meu Deus.

– Vou arranjar um absorvente e você coloca.

Nice não agradeceu.

Estava envergonhada.

Passou a imaginar como estaria a sua calça, se o sangue era visível externamente, se conseguiria ajeitar.

O homem a deixou com seus devaneios.

Algum tempo depois ele estava de volta.

Tirou a venda dos olhos dela.

Ele estava com um capuz.

Mandou que ela colocasse o absorvente no banheiro.

Mesmo sem ver o rosto dele, percebeu que sua intuição estava correta: era gordo. Só não sabia se tinha barba.

Devia ter, já que o capuz não se ajustava ao rosto.

No banheiro, percebeu uma parede gasta, um vaso sanitário sem tampa e um fedor de rodoviária.

Aquele banheiro não era lavado havia muito tempo.

Voltou para o cômodo contíguo e olhou rapidamente o ambiente antes que lhe colocasse a venda de novo.

Era uma casa simples, as paredes manchadas, os móveis velhos, muita poeira e uma geladeira azul.

Infelizmente a calça havia sido manchada.

– Por que me trouxeram aqui?

– Você é o nosso passaporte para a festa.

– O quê?

– Chega de papo.

Depois de algum tempo de silêncio assim que o homem que lhe trouxe o absorvente foi embora, voltou a ouvir.

Eram duas ou três pessoas.

Elas cochichavam e riam.

O que será que as levava a isso?

Talvez a calça manchada.

Não, a situação ali era muito mais grave. Mas, se eram sequestradores, por que não pediam detalhes a ela? Talvez por já terem tudo. Será?

Nice não era rica, mas sua família tinha uma boa situação financeira. Ela frequentava uma boa faculdade, tinha o próprio carro, comia em bons restaurantes, viajava.

Desde que conhecera Rui, o seu namorado, havia seis meses, já fizera pelo menos três viagens internacionais.

– O que vocês vão fazer comigo?, gritou para medir qual a distância que as pessoas estavam dela.

– Cale essa boca ou vai se arrepender.

Era uma voz de homem e ele estava irritado pelo tom.

Calou-se.

A angústia maior era não saber de nada do que estava acontecendo. Um sequestro muito bem planejado pelo jeito. Será que seus pais pagariam o resgate?

É claro que pagariam, ela mesma responde.

Jamais seus pais a deixariam morrer nas mãos de sequestradores perigosos e agressivos como aqueles.

O medo de ser morta a fazia delirar sobre o que perdia.

Triste o sequestro ocorrer justamente na véspera do seu aniversário. Ela não teria tempo de preparar a festa. Não teria presentes, abraços, beijos, nada mais.

Logo ela que sempre gostou de festas.

Pensar em festa agora era uma grande bobagem.

Talvez não tivesse mais festa alguma na sua vida. Os seus 22 anos estavam ali nas mãos daqueles sequestradores. E poderiam não sair mais daquela casa, do banheiro fedido.

Tanto que desejou fazer 23.

Lembra-se agora do namorado. Rui devia estar muito preocupado. Quando começaram a namorar, ele prometera que sempre a protegeria.

– Nada vai te acontecer, porque eu estarei do seu lado.

Era um homem sensível, inteligente, másculo.

Sabia fazer uma mulher se sentir bem na sua companhia.

O seu diferencial era nunca ser monótono.

Se pensava que ele estava triste, de repente tirava da cartola uma festa e eles dançavam, bebiam, riam.

Se pensava que ele estava preocupado, do nada ele tirava da cartola uma paz de buda e a fazia meditar com ele.

Era um homem surpreendente.

Quando ele lhe deu um anel com pedras de esmeraldas, ela não acreditou: não pelo presente, mas por ele vir dentro de uma concha do mar e servido com mariscos.

Eu quase comi o anel, ela se lembra contando para a família na volta da viagem que fizeram à Polinésia Francesa.

O passeio pelo conjunto de cinco arquipélagos próximo da Nova Zelândia, no meio do Pacífico, fora mágico.

Um tiro, seguido de mais um e um terceiro, este mais próximo dela, acabaram com os seus devaneios.

– Vamos, disse a mesma voz de homem de antes.

Nice foi agarrada pelos braços pelo homem e provavelmente pelo gordo do absorvente.

– O que aconteceu? Para onde vão me levar?

Eles a colocaram no carro e dirigiram por minutos intermináveis. Não falavam nada. O som do motor era insuportável. Nice achava que a estavam levando para morrer pela forma como a tiraram da casa.

Provavelmente o resgate não fora pago.

Ela suava frio e tremia muito.

– Chegamos, disse o que ela supunha ser o gordo.

– Onde? Vocês vão me matar? O que vão fazer?

– Eles não, mas eu vou.

Essa voz ela conhecia: era o Rui, mas não tinha certeza.

O medo não permitiu que ela segurasse a urina.

Para quem já estava com a calça manchada de menstruação, o xixi era o de menos.

Mas quando tiraram a venda, Nice viu que, em vez de um paredão de atiradores ou de torturadores, havia gente por todo lado, muito bem vestidos, rindo e aplaudindo.

Então começou a tocar “Always”, com Bon Jovi, e detrás dela surgiu Rui com um buquê de rosas nas mãos.

– Feliz aniversário, meu amor.

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